David Goodall, diante de tudo que viveu e vivia, decidiu que era hora de parar, de sair de cena, de deixar uma vida que já não fazia tanto sentido por estar se sentindo cansado e infeliz. Ele nos deixou um grande legado: temos que pensar na nossa morte para que ela nos seja digna
Na segunda semana do mês de maio de 2018 o mundo foi surpreendido com a decisão de um idoso de 104 anos que, cansado de viver, decidiu que era hora de morrer por ser este seu maior desejo. O nome dele era David Goodall. Nasceu em Londres, era ecologista e botânico, morava na Austrália em um pequeno apartamento na cidade de Perth. Contou em seus últimos relatos que não estava mais feliz. Os muitos anos de vida foram, aos poucos, trazendo limitações que fugiam de seu controle.
Trabalhava na Universidade de Edith Cowan, em Perth/Austrália, como associado honorário sem remuneração, para onde o passar dos anos o impossibilitou de se locomover dirigindo seu automóvel, por questões de saúde, levando-o a ter de trabalhar perto de casa.
Sofreu uma queda grave em seu apartamento e demorou dois dias para ser encontrado e atendido, episódio que levou seus médicos a prescreverem a ele cuidados integrais, a serem prestados durante as 24 horas do dia em sua própria residência ou em uma instituição que oferecesse este tipo de serviço.
Então, diante de tudo que viveu e vivia, decidiu que era hora de parar, de sair de cena, de deixar uma vida que já não fazia tanto sentido por estar se sentindo cansado e infeliz. Pegou um avião e dirigiu-se para a Suíça, onde na mundialmente conhecida clínica Life Cycle optou pelo suicídio assistido, pondo fim a mais de 100 anos de uma história de vida.
A realidade do idoso de 104 anos que nos parece num primeiro momento muito distante, principalmente por morarmos em outro continente, em um país considerado de terceiro mundo, nos torna mais próxima quando constatado que somos uma população que igualmente envelhece e na qual é ascendente o número de centenários. Este envelhecimento também traz consigo inúmeros casos de limitações que impossibilitam a estes idosos, igualmente centenários, de realizarem o que efetivamente gostariam, assim como ocorreu com Goodall, nas situações em que também se torna impossível sua locomoção até onde desejariam, dirigindo seu próprio automóvel ou por serem incontáveis os casos de idosos que caem em suas casas e demoram muito mais do que dois dias para serem encontrados.
Igualmente, moramos também em um país no qual, assim como na Austrália, cidade onde morava o cientista, o suicídio assistido é igualmente vetado. Assim, ainda que aparentemente em mundos distantes, a história de David Goodall e a nossa tem muita coisa em comum, principalmente, a necessária reflexão sobre a única coisa que nos é certa desde nossa concepção: a nossa finitude.
Esta questão que a muitos se configura como fúnebre demais ou mórbida o suficiente para ser assunto vetado, é tema relevantemente necessário para que se afirme que, sobre o que dele se pensar e na medida em que, o que sobre ele for concluído e paulatinamente determinado, dependerá o futuro de uma sociedade, que terá seus desejos de finitude atendidos ou não.
É certo que, pensar na própria morte não é tarefa fácil, ainda que seja esta a única certeza que todo ser humano traz consigo desde sua concepção e seu nascimento com vida, independentemente de se morar na Austrália, um país de primeiro mundo como acontecia com David Goodall, ou em países de terceiro mundo, como no Brasil. Refletir sobre o ato praticado por David Goodall implica em entender sobre algumas terminologias que muitas vezes, por ausência de conhecimento, levam a afirmações inverídicas ou distorcidas.
Suicídio Assistido e Eutanásia
David Goodall cometeu o chamado suicídio assistido, ou seja, diante do insuportável sofrimento que sentia pelo peso dos anos e diante de todas as limitações por ele vivenciadas, provocou a própria morte na clínica na Suíça. Com a ajuda de um terceiro que o assistia naquele momento, injetou ele próprio, na própria veia, líquido letal, previamente preparado por esta equipe que o amparava no momento de efetivação de sua escolha, que era morrer.
Para praticar o ato de tirar a própria vida, por si próprio, o cientista de 104 anos procurou um país que permite a prática do ato, a Suíça, mas poderia ter também optado pela Holanda ou pela Bélgica, que também admitem a prática do suicídio assistido, situação na qual uma injeção letal é prescrita por um profissional e administrada por aquele que deseja tirar a própria vida, quando, onde e como assim o desejar.
Não houve no caso do cientista a prática de Eutanásia, que é o ato praticado por um terceiro a fim de aliviar a dor daquele que sofre, tirando-lhe a vida. A Eutanásia é possível nos seguintes países: Suíça, Estados Unidos (alguns Estados), Colômbia, Bélgica, Holanda ou Uruguai, e diferentemente do suicídio assistido, tem por finalidade que alguém, não a própria pessoa, injete, por exemplo, um líquido letal nas veias de um terceiro, colocando fim ao seu sofrimento, o que configura a chamada eutanásia chamada de ativa ou, nos casos de existir um doente com algum tratamento ou medicamento disponível, deixar o profissional responsável por ele de agir, praticando a chamada eutanásia passiva.
Tanto o Suicídio Assistido quanto a Eutanásia estão dentro da chamada morte digna ou tecnicamente auxiliada, ambos vedados no Brasil. Segundo a legislação penal vigente, induzir, instigar ou auxiliar alguém a praticar suicídio é crime, previsto no artigo 122 do Código Penal. Matar alguém, injetando líquido letal em suas veias como no exemplo, configura homicídio, previsto no artigo 121, sendo necessário lembrar ainda que, caso se deixe de prestar a assistência devida em saúde e tendo o dever de fazê-lo, restará configurada a omissão de socorro, crime previsto no artigo 135, ambos também do Código Penal.
Como é que se caminha para uma escolha como esta de David Goodall?
Esta questão está relacionada a um campo chamado de bioética, termo que surgiu por volta do ano de 1970 e que tem como objeto, de forma simplista, a discussão entre os valores humanos e os empreendimentos técnico-científicos.
A vida é um inquestionável valor humano e os empreendimentos técnico-científicos revelam-se, nos casos como o deste contexto, nos avanços das tecnologias médicas e farmacológicas que a amparam, surgindo aí o diálogo entre ambas e a discussão de até onde se pretende ir, em cada caso, por parte de cada um que precisaria se submeter aos avanços em prol da própria saúde e em melhoria às condições da própria vida.
Todavia, sendo cada ser humano único, a ser individualmente considerado, qual é o desejo de cada um, dentro de sua mais profunda privacidade, caso necessite se submeter a algum tratamento disponível para que a própria vida se prolongue ou a própria dor seja amenizada?
Inevitavelmente esta questão traz outras infinitas reflexões, como, por exemplo, qual é o conceito, individual, único, privado e subjetivo de cada um sobre “vida”, “qualidade de vida”, dentre outros. Não há uma resposta exata para estas questões, principalmente se considerarmos os fatores religiosos e os inúmeros contextos sociais em que vive cada ser humano.
Nos países em que se admite o Suicídio Assistido e a Eutanásia, o que claramente prevalece é a dignidade da pessoa humana, pessoa esta que optou por praticar um deles diante de alguma situação vivida porque o sofrimento que lhe toca é absolutamente insuportável diante do quadro em saúde por ela vivenciado.
David Goodall virou uma incógnita ao mundo porque era “saudável”, não tinha nenhum problema de saúde como um estado vegetativo persistente, por exemplo, e era absolutamente senhor de suas razões quando quis morrer. Sabemos que quando se pensa em morte, pensa-se em se livrar da dor porque ela é absolutamente insuportável a ponto de se querer a todo custo encurtar a vida de quem a sente, inexistindo tratamento que amenize o sofrimento daquele que por ela passa.
O sofrimento do cientista não era físico, era psíquico, emocional. A vida tornou-se um fardo insuportável de ser carregado por ele próprio, e em nome de sua dignidade enquanto pessoa humana que era, optou por morrer.
Talvez porque não tenha encontrado acolhida, talvez porque não tenha recebido ajuda (psicológica, inclusive) antes do sofrimento se tornar tão insuportável, talvez porque suas vertentes religiosas assim o fizeram concluir ou talvez quiçá porque ele nem as tivesse. Entretanto, sem que saibamos se ele pensou no clamor que causaria à comunidade, científica ou não, fato é que David Goodall nos deixou um grande legado: temos que pensar na nossa morte para que ela nos seja digna.
Nascemos em uma sociedade que nos determina direitos e nos estabelece obrigações, o que não pode ser abandonado ou mitigado na medida em que envelhecemos. Somos cidadãos desde o dia de nosso nascimento e assim deve ser até o dia de nossa morte. Então que ela seja digna.
Não se trata de promover a cultura da instigação ao suicídio ou de se levantar uma bandeira em prol da eutanásia, mas sim de se promover uma necessária discussão sobre a dignidade da pessoa humana e da não submissão a tratamento humano ou degradante, por exemplo, já previstos como princípios em nossa Constituição Federal.
Trata-se de explicar a todos os brasileiros que nascem com vida, durante o seu crescimento e seu envelhecimento, que podem optar por passar ou não a um tratamento que não vai lhes trazer melhor qualidade de vida, se este for o conceito desta pessoa sobre o termo. Não basta a medicalização e o uso de todas as tecnologias disponíveis se esta não for vontade daquele que precisaria de qualquer delas. A escolha vem antes porque é dela que advém a dignidade.
Os países que hoje admitem a morte digna, tanto como Suicídio assistido ou como Eutanásia ativa ou passiva, também passaram por estas discussões. Vida é vida em todo lugar do mundo e carrega consigo suas peculiaridades.
Diretivas antecipadas de vontade
As diretivas antecipadas de vontade tem inegavelmente um peso imenso nas escolhas de fim de vida e podem sim contribuir para que as questões de finitude sejam paulatinamente consideradas, ainda que não tenhamos nenhuma legislação para isso, como já abordamos em outro artigo (As diretivas antecipadas de vontade e sua relevância na longevidade – março/2018).
A sociedade que envelhece tem de saber que pode escolher, mas antes de escolher, precisa ser informada sobre o que é melhor para cada um, e o melhor, às vezes, é não se submeter a nada, se esta for a vontade daquele que assim precisaria que o fosse.
O passar dos anos e os relatos como o de David Goodall fazem concluir que o Congresso Nacional Brasileiro precisa legislar sobre a finitude, dando mais subsídio à finitude digna de cada um, com a imposição de limites legais humanos e não apenas teóricos.
O Poder Judiciário precisa ser acionado a decidir sobre a morte digna na mesma medida em que é operacionalizado para oferecer tratamentos e medicamentos que tantas vezes prolongam uma vida já vivida sem tanta qualidade por aquele que assim a vê, desde que esta seja a efetiva vontade de quem entre com ações desse gênero.
Que descanse em paz o centenário cientista, sem que o julguemos acerca de seus atos, a menos que façamos isso trazendo para nossa realidade o legado de seus ensinamentos: nada pode ser maior que a dignidade humana.
Que observemos e respeitemos principalmente a individualidade e os conceitos privados de cada um, para que antes de julgar o outro, lembremos que também somos mortais e que somente quem sente a dor é capaz de dimensioná-la, a ponto de querer nela por fim da maneira que melhor reflita a dignidade carregada, algumas vezes, por mais de 100 anos de vida.