Pesquisa, ao buscar entender a relação entre condições sociais e de saúde revela condições desfavoráveis entre idosos pretos e pardos (negros), explicadas pelo racismo estrutural e institucional.
Por Sebastião Moura (*)
Estudo conduzido pelo doutor em epidemiologia Roudom Ferreira Moura mostrou que os idosos negros na cidade de São Paulo apresentam piores condições de escolaridade, renda, hipertensão arterial e menos acesso a serviços privados de saúde em relação aos brancos. Além disso, os idosos negros também avaliaram sua saúde de forma pior: 45,5 % dos idosos pardos e 47,2% dos idosos pretos descreveram seu estado de saúde negativamente (regular, ruim ou muito ruim), enquanto nos idosos brancos esse número foi de 33%.
A pesquisa consistiu de uma análise estatística robusta que buscou entender a relação entre condições sociais e de saúde e variáveis demográficas, socioeconômicas e comportamentais e o uso e o acesso a serviços de saúde associados com cor da pele/raça autodeclarada de 1.017 idosos do município de São Paulo (63,3% brancos, 21,4% pardos e 7,3% pretos/negros), a partir de dados coletados pelo Inquérito de Saúde do Município de São Paulo (ISA-Capital-SP-2015), da Secretaria da Saúde da Prefeitura Municipal de São Paulo.
As desigualdades raciais na saúde são um tema historicamente negligenciado na academia brasileira. Até 1996, por exemplo, 87% dos registros de óbitos do Estado de São Paulo sequer tinham indicação de qual era a cor da pele / raça dos indivíduos.
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Segundo Ferreira Moura, o racismo é uma questão bastante controversa no Brasil, onde a influência de ideias como a teoria da democracia racial, muito difundida por autores como Gilberto Freyre, ainda dificulta o reconhecimento da existência desse problema social, algo que aparece, inclusive, na resistência de algumas publicações a aceitar artigos pautando esse tema.
Tendo em vista a importância de investigar essas desigualdades para a aplicação de políticas de saúde pública de qualidade, identificar os fatores determinantes sociais e de saúde da população idosa do município de São Paulo sob uma perspectiva racial foi o objetivo da sua tese de doutorado Idosos brancos e negros da Cidade de São Paulo: desigualdades das condições sociais e de saúde, orientada pelo professor José Leopoldo Ferreira Antunes, do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
Olhar para o recorte demográfico estudado por ele já revela uma dimensão do racismo estrutural. Apesar de a maioria da população brasileira ser negra, esse grupo é minoria entre os idosos, pois a expectativa de vida dos negros é pior que a dos brancos. “O Brasil é negro, mas o envelhecimento é branco”, comenta Moura.
Distribuição etária por raça/cor em 2018
O pesquisador afirma que esses indicadores se explicam por condições de racismo estrutural e institucional que se iniciaram, provavelmente, ainda na infância desses indivíduos negros e os afetaram negativamente quanto às questões de desenvolvimento e envelhecimento, classe social, nível de escolaridade, condições e tipos de trabalho, renda, acesso e uso de bens e serviços e condições de saúde.
Racismo estrutural e racismo institucional
De acordo com o Ph.D. em Direito e professor Silvio Almeida, o racismo estrutural engloba tanto comportamentos individuais como institucionais. O racismo institucional é a atuação das instituições públicas e privadas em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça. Ambos são frutos de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. As pessoas e as instituições são racistas porque a sociedade, em virtude de um processo histórico de dominação da branquitude, é racista.
Como acontece o racismo na saúde
O racismo estrutural e institucional afeta a saúde das pessoas negras tanto ao moldar suas condições socioeconômicas e a organização de políticas públicas de saúde como na forma com que elas são atendidas ao buscar os serviços médicos. A psicóloga e pesquisadora da FSP Mônica Mendes Gonçalves analisou essa dinâmica em sua dissertação de mestrado Raça e saúde: concepções, antíteses e antinomia na atenção básica, partindo de entrevistas com profissionais da saúde do SUS sobre situações em que eles atenderam pacientes negros.
Os relatos são chocantes. Em um dos casos relatados a ela por uma das médicas que entrevistou em sua pesquisa, um senhor de idade, pessoa em situação de rua, teve de ser convencido a ir para o hospital pois estava com câncer, é internado e sofre tantos maus tratos durante essa internação, incluindo privação de comida, que saiu desnutrido de lá. “Essa pessoa preta comia melhor morando na rua do que dentro de um hospital”, ela comenta.
A desigualdade é gritante. Essa mesma médica também conta o caso de um outro paciente, esse um homem branco, também pessoa em situação de rua, que levou cinco meses para fazer uma cirurgia cuja fila de espera no SUS é de dois anos, pois os funcionários do hospital fizeram um esforço extraordinário para avançar o tratamento dele. A explicação? “A equipe ficou indignada em ver um homem branco em situação de rua.”
Mônica afirma que essa é a única situação em que se pode falar de “racismo reverso”, ironizando esse mito do senso comum de que pessoas brancas também podem sofrer racismo. “Uma discriminação positiva em que um sujeito recebe uma série de vantagens e benefícios pois, por ser branco, mobiliza a indignação e comoção de outras pessoas brancas que não têm essa reação com pacientes negros, pois a pobreza e marginalização dessas pessoas são naturalizadas”, ela explica.
“Investir em política antirracista na saúde envolve investimento em direitos trabalhistas que garantam a equidade, saneamento básico em bairros de periferia, direito à cidade, direcionamento de verbas do SUS para atenção primária e secundária e não hospitalar, tudo que a gente não tem feito. Se a gente não entende que a genética está subordinada ao social e não muda essa situação social, não importa a engenharia genética que seja feita, ela vai ser investimento de dinheiro público em políticas que não vão ter efetividade a longo prazo”, defende Mônica Mendes Gonçalves.
Ela também chama a atenção para a importância do reconhecimento da desigualdade racial na saúde como algo que é fruto de uma condição social de discriminação, pois isso direciona o tipo de política pública que é aplicada para combater esse racismo. A prevalência de hipertensão em pessoas negras, também encontrada pela tese de Moura, é um exemplo ilustrativo. Há uma disputa na academia entre aqueles que defendem que isso tem explicação genética e quem aponta para o componente social, citando, por exemplo, estudos comparativos entre população negra nas Américas e na África que concluíram que o estresse da vivência de racismo é o fator predominante nesse fenômeno.
Responder a essa pergunta é importante pois o tipo de política de combate ao racismo na saúde aplicada pelo poder público depende de como se diagnostica a origem do problema. De acordo com Mônica, propostas exclusivamente baseadas na explicação genética para a desigualdade, como incrementar tecnologia medicamentosa para hipertensão específica para a população negra ou estudar possíveis diferenças fisiológicas, são uma volta ao racismo científico do século 19 e um caminho fadado ao fracasso.
“Investir em política antirracista na saúde envolve investimento em direitos trabalhistas que garantam a equidade, saneamento básico em bairros de periferia, direito à cidade, direcionamento de verbas do SUS para atenção primária e secundária e não hospitalar, tudo que a gente não tem feito. Se a gente não entende que a genética está subordinada ao social e não muda essa situação social, não importa a engenharia genética que seja feita, ela vai ser investimento de dinheiro público em políticas que não vão ter efetividade a longo prazo”, defende a pesquisadora.
Moura planeja publicar a tese Idosos brancos e negros da Cidade de São Paulo: desigualdades das condições sociais e de saúde na forma de artigos em breve, mas, por enquanto, ela ainda não está disponível para o público. O pesquisador ressalta que as conclusões desse estudo poderão ser usadas por gestores, profissionais de saúde e representantes da população negra para desenvolver, avaliar e monitorar políticas, programas e ações que promovam a melhoria da qualidade de vida dos idosos negros.
(*) Sebastião Moura – escreve para o Jornal USP. Matéria publicada no dia 10/08/2021
Foto destaque de Jorge Maruta/USP Imagens