Este ano eles completam 71 anos de casados

Sr. Anthenor de Braga Farias, 92 anos de idade, quase um autodidata. Com uma memória invejável, relata sua história, sua paixão pelos livros e diz que muito trabalho, persistência, fé e uma companheira dedicada, foram ingredientes imprescindíveis em suas conquistas.

Marisa M. Feriancic

 

Sr. Anthenor, 92 anos e dona Fernandina, 91 anos. Dessa união nasceram 14 filhos, 30 netos e 17 bisnetos.

No dia 13 de maio de 1914, na Fazenda Bernardo Vieira, do Distrito de Branquinha, interior de Alagoas, nascia o menininho Anthenor,que alguns anos mais tarde seria chamado de menino homem. Muito novinho, saiu de casa para estudar, assumiu responsabilidades e enfrentou muitos desafios. Com apenas quatro anos de idade já ajudava seu pai Joaquim e Dona Joaninha, que trabalhavam na roça.

Senhor Anthenor conta sua história

Nasci em Alagoas, no dia 13 de maio de 1914. Meus pais eram muito pobres e eu comecei a trabalhar muito cedo, com quatro anos eu já trabalhava na roça, ajudando meu pai. Morávamos na fazenda do senhor Caetano José dos Santos, éramos em 14 irmãos, mas convivi pouco com eles. Quando tinha nove anos fui para Rio Largo, a 70 quilômetros de Branquinha, morar com o senhor Manoel (avô de minha mulher), que me levou para estudar. Eu sempre gostei muito de estudar, mas não tinha condições, precisava ajudar meus pais.

O senhor Manoel – santo homem, tinha um pequeno armazém, na Fazenda Bernardo Vieira. Lá, ele vendia arroz, bacalhau, feijão, coisas de comida. Só tinha movimento aos domingos quando os trabalhadores apareciam para fazer compras. Nessa fazenda, ele organizou uma escolinha para alfabetizar os filhos dos sitiantes. Às vezes eu escapava do trabalho, ia para a porta da escolinha e ficava apreciando, vendo os meninos estudar. Eu não podia freqüentar porque tinha que trabalhar. Um dia ele me perguntou:

– Menino, você quer estudar?

– Eu quero. E completei: O senhor tem que pedir autorização para minha mãe; é ela quem manda.

Minha mãe disse que não poderia pagar. Ele insistiu dizendo que não cobraria nada que queria somente me ajudar. Deu-me uma cartilha, comecei a estudar e logo eu já sabia a cartilha inteira. Estudava tabuada e decorava com muita facilidade. Ele perguntava e eu respondia tudo. Nessa época eu já tinha uma namoradinha. Era um menino danado, esperto. Menino de roça aprende tudo muito cedo, é desenvolvido.

Seu Manoel, uma alma nobre

Quando eu tinha nove anos, o senhor Manoel resolveu ir para Rio Largo, onde morava a família dele. Fechou a escolinha e eu tive que parar de estudar. Quando ele perguntou se eu queria ir com ele, eu disse que sim. Minha mãe não queria deixar, dizia que eu tinha que ajudar meu pai na roça. Os vizinhos falavam para minha mãe não deixar, que eu seria um escravo dele. Mas o velho era uma alma nobre, não tinha nada disso. Ele só queria me ajudar. O velho insistiu dizendo que eu gostava de estudar e que ele cuidaria de mim. Ele convenceu minha mãe, encerrou as portas do armazém, foi embora e eu fui logo em seguida.

No dia 11 de novembro de 1924, uma segunda-feira, às 10 h da manhã, com somente dez anos de idade, eu cheguei sozinho em Rio Largo. Chegando lá vi uma menininha linda de nove anos, era Fernandina. Nesse momento meu coração já palpitou por ela. Ela nem ligou para mim. Era muito novinha. Eu me criei com ela. Era como se fossemos irmãos. Fiquei trabalhando com ele e quando começou o ano escolar eu fui estudar.

Sempre tive uma memória privilegiada, tirava notas boas, ia bem na escola. Eu saía da escola e ia para a bodega (mercearia), trabalhar com ele. No ano seguinte, o velho fechou a bodega, ficou sem recursos financeiros e eu tive que sair da escola e procurar trabalho.Tinha só 10 anos quando fui trabalhar num bar restaurante. O senhor Ugo Aragão, dono do restaurante morava no próprio local e eu fui morar com ele. Eu servia as pessoas. Ali próximo do restaurante tinha circo, teatro, e quando acabava a sessão, as pessoas iam comer. Trabalhei um ano nessa casa.

Nunca mais voltei para a casa dos meus pais. Minha mãe, algumas vezes, ia me visitar. O senhor Ugo mudou-se para o Rio de Janeiro e queria me levar com ele, mas eu não quis ir. Ele me devia um dinheiro, me pagou a mais do que eu tinha para receber e eu dei para o senhor Manoel para ajudar nas despesas da casa. Precisava arrumar outro emprego. Fui trabalhar numa loja, ajudando no balcão. Aos 13 anos consegui emprego na loja de tecidos “Águia de Ouro”. Um dia, trabalhando nessa loja, encontrei na gaveta do balcão umas lições de datilografia. O sobrinho do dono tinha feito um curso de datilografia e largou as lições ali. Peguei esse material e comecei a estudar sozinho. Em 10 dias eu já sabia datilografia. Cheguei a datilografar “300 batidas” por minuto.

Nessa época, a Fernandina nem me dava bola, não sabia que eu gostava dela e começou a namorar um rapaz que trabalhava comigo na loja. Morria de ciúme. Ela não gosta que eu fale, mas ela era bem namoradeira.

(Dona Fernandina desmente, diz que só teve três namorados).

Trabalhei nessa loja durante um tempo até que um dia essa loja fechou e eu fiquei sem emprego novamente. Comprei uma máquina Kodak e comecei a tirar fotos, fazia as fotos mandava revelar e vendia. Eu nunca parei de trabalhar, sempre inventava alguma coisa para fazer.

O menino homem

Em 29 de Novembro de 1929, com 15 anos, meu sogro me arrumou um emprego numa fábrica de toalhas alagoanas. Nessa fábrica trabalhavam também meu sogro e o irmão dele. A fábrica tinha representantes no Brasil inteiro. Na fábrica, tinha escola para os filhos dos operários, farmácia, médicos. Depois de um mês passei para o escritório da fábrica fazendo folha de pagamento. Nunca parei de estudar. Comprava livros e estudava sozinho. No sábado chegava o dinheiro e a gente tinha que acertar as contas. Isso era serviço do chefe do setor, mas quem fazia o serviço era eu. Tinha só 16 anos. Era muita responsabilidade, mas eu era desembaraçado e dava conta do serviço. Trabalhei nesse escritório até 05 de dezembro de 1936. O salário era pouco, somente 50 mil reis por semana. Precisava me ajeitar fazendo outras coisas.

Montava uma barraquinha nas festas comemorativas da fábrica e conseguia ganhar uns extras. No carnaval eu vendia produtos de carnaval. Tinha crédito na praça. Eles diziam que eu era um menino homem. Um dia fui em uma loja e comprei dois cortes de tecido para camisa e fui vender. Nesse serviço de “meio turco” eu comecei a vender tudo que me aparecia: guarda-chuva, terno, sapato, chapéu, etc. Arranjei uma representação de moveis domésticos, cozinha, mesa de jantar, vendi de tudo. Ganhava cinco por cento de comissão.

A vitória no amor

Era 23 de julho de 1931 e a menina Fernandina ainda não tinha namorado comigo. Meu velho (o avó dela) já tinha morrido e eu tinha que manter a casa. O dinheiro era pouco. Eu vendia revistas, dava um jeito de me virar para as prestações. Teve um baile na fábrica, eu estava caminhando, quando percebi que vinha alguém atrás de mim. Era a Fernandina. Ela vinha com um cravo branco na mão, se aproximou e me deu o cravo. Começamos a namorar. Alguém falou para a minha namorada: Você está namorando o Anthenor? Ele não tem futuro. Imagine? Era eu que bancava tudo. Começamos a namorar em 1931. Em 1935 aluguei uma casinha em Rio Largo, casamos e fomos morar lá.

Casamento de Anthenor e Fernandina, dia 7 de outubro de 1935

O dono da fábrica era muito vaidoso não falava com ninguém, mas gostava muito do meu sogro. Meu sogro também era autodidata, muito inteligente, escrevia em jornais. Era uma pessoa muito querida. Era meu sogro e meu irmão adotivo. Meu serviço na fábrica era calcular o custo dos tecidos. Um dia, muito atrevido, falei para o gerente:

– Senhor Gustavo, o senhor despreza os operários da fábrica e traz seus técnicos de Portugal e eles não entendem nada disso. Gastam um barril de tinta para preparar o tecido e não anotam o que gastam. Quando chegam na dosagem certa, já usaram um montão de corantes. Dizer isso ao chefe era muito atrevimento meu, mas ele concordou comigo e disse:

– Eu sei que o senhor gosta de estudar eu vou lhe levar para Maceió.

Chegando em casa falei com meu sogro.

– Meu chefe me convidou para ir para Maceió. Mas como vou fazer? Tenho família.

Ele me respondeu:

– Meu filho, aceite. Se ele vai lhe levar para estudar, provavelmente vai lhe dar um salário condizente. Lá você vai ser funcionário da companhia, aqui você é operário. Eu aceitei e no dia 16 de novembro de 1936 fui para Maceió.

No final do mês ganhei um salário de 300 mil reis. Era pouco. No interior eu tinha um salário de 250 e mais os negócios particulares. Tirava mais do que isso. Mesmo assim continuei trabalhando com ele e fui estudando por conta própria.

Em 17 de junho de 1937 minha sogra faleceu. Como eu não podia ficar em Maceió e manter a família financeiramente, fui morar numa república e Fernandina voltou para Rio Largo, para a casa do pai dela. Nos finais de semana ia visitar minha família em Rio Largo. Meu chefe perguntava porque eu precisava ir para casa aos sábados. Eu disse a ele:

– Tenho mulher e ela é filha única. Com o salário que o senhor me paga não dá para manter a família, por isso tive que mandar ela para a casa do pai.

Nessa época eu me matriculei numa escola de curso propedêutico, à noite. Era um curso de três anos feito em um só. Era equivalente ao curso primário. Eu já sabia tudo, mas precisava do diploma. Queria me preparar para fazer um curso superior. Tive aula com o Professor Aurélio Buarque de Holanda. Guardo uma recordação muito importante. O Professor Buarque dava trabalhos para fazer em casa. Um dia ele deu uma dissertação com o título “Sala de Aula”. Todos fizeram, entregaram, corrigiu e na aula seguinte pegou um trabalho e falou:

– Vou analisar a dissertação de um aluno e vocês verão que maravilha.

Começou a ler e eu percebi que era a minha. Ele analisava tudo. Ao final da leitura disse:

– Vou dar nota cem para o aluno porque não tem cento e dez. Senhor Anthenor de Braga Farias, venha pegar sua redação. Fiquei muito feliz e também muito envergonhado. Saí da escola em novembro, foram só seis meses. O exame seria feito em Recife, mas estourou a revolução e eu não pude ir para fazer o exame.

A perseverança

Ainda na Companhia, prestei o meu primeiro concurso no Banco do Brasil e fui aprovado. No dia cinco de dezembro de 1939, fui falar com o comendador Gustavo Altamiro, dono da Companhia e entregar minha carta de demissão. Contei à ele que tinha prestado os exames do Banco do Brasil enquanto ele estava no Rio de Janeiro. Ele não admitia que a gente fizesse concurso. O Comendador me pediu que ficasse mais 30 dias, pois esse era o tempo que eu tinha para tomar posse no banco e que ele precisava de mim, pois o Esperidião sairia de férias. Refutei, dizendo que já tinha conversado com o Esperidião e que ele ficaria sem férias. Minha missão terminava ali. Pus a carta de demissão na mesa dele. Fui para Maceió e fiquei um tempo sozinho. Depois de um ano levei a família para lá. Fiquei em Maceió durante quatro anos.

O segundo concurso do Banco – novas conquistas

Precisavam de mais gente no Banco do Brasil. Abriu novo concurso e os colegas me chamaram. Eu disse a eles que não iria fazer o concurso. Achei que um mês era pouco para me preparar. Eles contrataram um professor e começaram a estudar e eu comecei a estudar sozinho. Precisava estudar mais aritmética. Fui na Livraria, comprei um livro de matemática da FTD, e comecei a estudar. Peguei um livro com todos os concursos realizados no Banco do Brasil, em todos os estados e fui fazendo os exercícios. Quando eu não conseguia fazer eu recorria ao livro de teoria. E assim foi. Meus colegas faziam aulas particulares, tinham vários professores. Eu continuava estudando por conta própria. Todo o dia chegava do banco, sentava-me à mesa e começava a estudar. Minha mulher dizia:

– Anthenor, você morre e me deixa viúva com esses meninos.

– Não morro não mulher.

Minha mulher sempre me apoiou. Ela é uma santa. Quando chegava ao Banco para trabalhar, os colegas me pediam explicações e eu respondia tudo. Eles brincavam dizendo que eu não tinha professor e resolvia todos os exercícios. Eu dizia a eles:

– Eu não perco tempo. Saio daqui, tomo o bonde, vou para casa, tomo um banho, janto e já me sento para estudar. Todos os dias. Vocês vão para casa, jantam e vão para a escola. O professor espera por um, espera por outro, e vocês perdem tempo. Eu sou mais prático.

Chegou o dia do Concurso e fomos para Recife. Os exames seriam realizados lá. Fui falando sobre contabilidade para meus amigos a viagem inteira. Chegamos em Recife, ficamos numa pensão e no dia seguinte à tarde fomos fazer as provas. A Primeira foi de português. À noite fizemos Inglês e Francês. No domingo fizemos matemática pela manhã e contabilidade à tarde. Tirei o segundo lugar no concurso. Foi um trabalho danado. Liguei para minha mulher e disse que estava voltando com muita esperança. Em um ano fui promovido, o salário que eu ganharia em 2 anos de banco, ganhei com um ano. Fiz uma carreira vertiginosa. Fiquei 40 anos no Banco do Brasil, em Maceió fiquei trabalhando 4 anos.

Um longo isolamento – a doença pulmonar

Em 1945, surgiu uma vaga de chefe de serviço que precisava ter no mínimo 15 anos, e eu com cinco anos de banco, fui nomeado contador de Ouro Fino, Minas Gerais. Chamavam-me de menino prodígio. Naquela época o salário de banco era muito bom. Mas nem tudo de bom acontece.

Cheguei em Maceió tossindo, com mal estar, dor de cabeça, fui ao médico, ele fez uns exames e me disse: você está com um problema sério no pulmão, é tuberculose. Eu tinha feito uma vitória maravilhosa e agora a doença. Tinha sido nomeado Contador de Outro Fino e não poderia assumir. Fui ao banco e disse que no dia seguinte não voltaria mais lá. Tinha que tirar uma licença médica.

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Naquele tempo, doente do pulmão era como um leproso. Os amigos se afastavam, não queriam saber da gente. Cheguei em casa e pensei: não posso ficar em casa porque posso contaminar minha mulher e meus filhos. Vou morrer mesmo, então vou morrer longe. Naquela época, não tinha antibióticos[1]1, tuberculose matava. Eu precisava ser realista. Falei com o médico Dr. Gastão, que eu iria me tratar em Belo horizonte. Falavam que a poeira de Belo Horizonte curava.

Tirei licença médica, tomei o avião e fui embora. Internei-me no Hospital Hugo Werneck, um médico que teve problemas do pulmão e se curou na Suíça. Cheguei em Belo Horizonte, chovia muito. Fui direto para um hotel. O gerente me olhou e se assustou. Eu estava cadavérico. Pesava 40 quilos. Percebi que não gostou da minha aparência e disse que não tinha vaga. Fui para outro hotel e consegui uma vaga. Quando fui para o quarto eram 11 horas da noite. Tentava comer umas frutas que eu tinha comprado, mas não tinha vontade de nada. Só pensava na minha família, minha mulher sozinha, com seis filhos, sem recursos. Aquilo era uma dor que ninguém imagina. Passei a noite toda tossindo. De manhã, levantei, tomei café no quarto e fui até uma agência do Banco do Brasil levar os documentos para a internação. Chegando na agência bancária eu disse que queria falar com o senhor Osvaldo e o rapaz respondeu:

-Sou eu mesmo.

Essa criatura foi um anjo na minha vida, mas nesse dia começou minha odisséia. Ele me falou:

– Não se preocupe, você vai se curar. Mostrou-me algumas pessoas ali no banco que estavam trabalhando e que segundo ele ficaram doentes e se curaram.

O problema era que o hospital Hugo Werneck não estava mais atendendo funcionários do Banco do Brasil. Teria que me internar nos hospitais dos bancários, mas eles estavam sempre lotados.

O Osvaldo chamou seu superior, médico do Banco, e contou a história para ele.

– Esse aqui veio de Maceió. Tem mulher e 6 filhos, o banco está internando ele. Se ele for esperar uma vaga no hospital dos bancários, vai se complicar.

Esse médico foi outro anjo da guarda na minha vida. Ele me olhou e disse:

– Você vomitou muito sangue?

– Não.

– Então vomitou, senão você não consegue internação. Você vai dizer a eles que eu fui chamado pelo Hotel São Bento e que você estava se esvaindo em sangue. De maneira que eles tenham que fazer uma internação, nem que seja provisória.

Fui internado e só pensava na vida:

– Quanto tempo será que eu vou ficar aqui? Será que eu vou ver minha família novamente?

No dia seguinte veio o médico, me examinou e disse que eu precisava fazer repouso absoluto no hospital. Eu trabalhava muito, fazia muito esforço, não tinha uma vida muito regrada de descanso e alimentação. Os médicos resolveram aplicar um pneumotórax porque deu um derrame no pulmão e as paredes se colaram. Com o tempo fui melhorando. Um dia chegou o telefonema pedindo que me transferissem para o hospital dos bancários. Fiz um recurso pedindo a reconsideração, dizendo que estava em tratamento e já estava melhorando. Vinha ganhado peso, e se aquela altura eu fosse transferido de hospital, iria me complicar. O meu interesse era me restabelecer o quanto antes, voltar ao trabalho e à minha família. Eles aceitaram o pedido e eu fiquei no mesmo hospital. Tinha que fazer uma cirurgia, abrir o pulmão para funcionar o pneumotórax. Fiz a cirurgia e melhorei muito. O tratamento foi bom, muito longo, mas eu não curava. Aconselharam-me a mudar de médico. Fiquei constrangido, mas precisava fazer uma tentativa. Eu via as pessoas que iam embora do Hospital e de repente tinham uma recaída e voltavam. Conversei com o Dr. Orlando, médico do Banco, pedi que ele não me levasse a mal, mas que eu iria consultar outro médico. Ele disse que eu poderia fazer minha consulta sem problemas. Consultei o Dr. Paulo e ele me explicou que a lesão era no ápice do pulmão, um lugar de difícil acesso. Eu poderia me restabelecer, mas que nada impediria de ter um resfriado e a tuberculose voltar. A sugestão era fazer uma cirurgia que cortasse algumas costelas até atingir o pulmão para que ele ficasse isolado. Não tinha muita alternativa. Naquela época, ainda não existiam antibióticos1 como a penicilina.

Quem ia para a cirurgia, dificilmente voltava. Muitos morriam na própria mesa de operação. Eu concordei com a cirurgia. Seria melhor morrer do que ficar com essa preocupação. Pensava assim: se eu morro minha mulher fica livre de mim, de compromissos. Ela é muito moça, muito bonita, tem seis filhos para criar. Se eu não morrer eu fico bom e vou embora para casa. Escrevi para minha mulher contando que eu tinha decidido fazer a cirurgia, que eu venceria mais essa batalha e que ela rezasse por mim.

Novos contratempos

A direção geral do Banco não concordou que eu continuasse lá. Tinha que sair. Fiz novamente a documentação pedindo a reconsideração e fiquei aguardando para operar. Consegui me manter no hospital e fiquei esperando a resposta da carta de minha mulher. Nesse ínterim o Banco aceita meu pedido e autoriza minha cirurgia. Em vez de minha mulher me escrever ela foi até Belo horizonte me fazer uma visita e eu fiquei maluco de satisfação. Fazia mais de um ano que a gente não se via. Quando ela me viu quase não me reconheceu. Eu estava melhor, e pesava 64 quilos. Ela estava ali, me dando nova vida. Fiz a cirurgia e ela ficou um tempo em Belo Horizonte.

Nesse momento, dona Fernandina, que participava da nossa conversa, me conta como aconteceu o encontro:

Recebi a carta do Anthenor e logo em seguida recebi outra de uma senhora, que assinava Guiomar. Eu não a conhecia. Seu marido estava internado no mesmo hospital que o Anthenor e ela fazia companhia para o marido. Quando o carteiro me entregou a carta eu estava na rua, abri, comecei a ler e a chorar. A carta dizia o seguinte: “Dona Fernandina, o médico disse que a pior doença do seu marido Anthenor é a saudade, o Doutor acha que se a senhora puder vir para cá será muito bom”. Cheguei em casa e conversei com meu pai. Tinha seis filhos para cuidar. Meu pai me disse: Vai minha filha, daremos um jeito. Uma tia se prontificou a cuidar das crianças e lá fui eu para Belo Horizonte.

Nesse momento o senhor Anthenor diz à ela:

– Eu não sabia desta história. Você nunca me contou.

Dona Fernandina deu um sorriso maroto e continuou:

O Anthenor foi me esperar no aeroporto. Quando cheguei não o reconheci. Ele estava de bigodes e mais gordo. Pesando 64 quilos, vinte e quatro quilos a mais. Só o reconheci quando ele sorriu para mim. Fiquei com ele no hospital durante sete meses.

Senhor Anthenor continou sua história:

Saí da cirurgia muito pálido, tive uma hemorragia forte. Tinha que tirar 5 costelas, numa primeira vez e após 30 dias fazer nova cirurgia para tirar mais quatro. Devido a hemorragia, o médico parou na quarta costela. Levaram-me para o quarto e tinha que deitar em cima do corte para cicatrizar. Não era brincadeira. Após 30 dias fui fazer uma planigrafia para fazer 2ª cirurgia. O radiologista fez o exame e disse: O senhor está curado, não precisa fazer mais nada. Cicatrizou tudo. Nem alfaiate percebe. Fiquei lá ainda durante alguns meses. Minha esposa que estava comigo há 7 meses engravidou e teve que voltar para casa. Não poderia ficar comigo no hospital devido a gravidez.

Em setembro de 1947 eu voltei para Maceió, para casa, curado de vez. No dia 18 de janeiro de 1948 eu voltei ao trabalho. Ao todo, fiquei quase três anos afastado. Fiquei internado dois anos e meio no Hospital. Internei em 1945 e saí em 1947. Recomecei minha vida. Tomei posse do meu cargo de contador de Ouro Fino e fiquei lá durante dois anos.

Em 1951 fui nomeado gerente de Itajubá. Lá eu inaugurei a primeira agência do Banco do Brasil. Fiquei em Itajubá nove anos e depois me transferi para São Paulo. Trabalhei em S. Caetano, Sto. André, São Bernardo e Agência Luz.

Aposentadoria: o que fazer depois?

Em março de 1979 eu queria sair do Banco. O pessoal ficava me xingando: esse velho não sai daí, precisa dar lugar para os outros. E o que eu ia fazer depois de 40 anos de banco? Fui convidado pelo governador Maluf para ser diretor do Banco de Estado. Fiquei no Banco do Estado de São Paulo durante 4 anos e fiz um bom trabalho. Em 1983 terminou o mandato do Maluf e fundei junto com três amigos uma distribuidora de valores. Veio a queda da moeda e eu tive que parar. Trabalhei durante 74 anos.

Minha vista não me ajuda mais

Tenho uma degeneração da mácula. Isso começou em 1994. Minha vista foi piorando e estou perdendo completamente a visão. Eu que sempre gostei de ler, de estudar, hoje não posso ler mais. Só vejo um borrão. A coisa que eu mais sinto falta é da leitura. Poderia arrumar alguém para ler para mim, mas as pessoas não têm tempo, nem disposição. Eu gosto muito de biografias. Acho que poderia arrumar uma pessoa para ler para mim. Eu sempre tive memória boa, mas a leitura ajuda muito a desenvolver a memória. Por isso eu sinto falta da leitura. A gente aprende cada dia mais.

Como está à saúde?

A saúde não está boa. Pelo seguinte: eu tenho um marca-passo, que às vezes tem que ser trocado, a Fernandina também tem. Eu tomo oito remédios por dia. O intestino, às vezes, não funciona bem e me dá um pouco de trabalho. Tenho duas hérnias que precisaria operar mas não tenho mais coragem. Elas me incomodam muito.

E o lazer?

Gosto de televisão, mas só escuto, não vejo quase nada. Gosto de noticiário. Gosto de ouvir música, ouço muito clássica popular, às vezes vou deitar e quero ouvir música, mas não posso atrapalhar minha mulher, incomodar ela. Na sala incomoda as pessoas.

Senhor Anthenor me mostra um machucado na perna e me explica que foi culpa de um sonho.

– Ontem eu estava sonhando com um amigo. Ele tinha viajado para Bauru e deixado uma menina pequena de um ano e meio para eu cuidar. A criança se aproximou de mim, mas estava procurando ele. Quando ela me viu começou a chorar que queria o pai. Foi se chegando a mim, estendi a mão, me preparando para pegar a menina. Caí da cama e machuquei o joelho. E agora demora a cicatrizar.

Como o senhor vê a velhice?

O envelhecimento não me causa preocupação nenhuma. Eu já vivi muito. Aproveitei bastante a vida, trabalhei muito, fiz muito bem a todo mundo. Saí do banco sem fazer nenhum inimigo. Comandei gente a vida inteira. Fui gerente durante 29 anos e não tenho inimigos. Quando eu queria chamar a atenção de um funcionário, chamava, conversava sem machucar, sem ofender. Quando saí de Itajubá, fizeram uma despedida muito bonita. Foi surpresa. Eram 18 horas e eu pedi o carro para ir embora. Eles seguraram o carro, e eu falava: me traz o carro que eu quero ir embora. O carro chegou, quando desci a escadaria, tinha uma fileira de moças jogando pétalas de rosa em mim, e no fundo um rapaz com a máquina fotográfica. Fiquei muito feliz. È bom ser reconhecido. Eu tive muitos clientes, nunca dei um tostão de prejuízo ao banco durante todos esses anos trabalhados. Quando via que a pessoa não era boa de crédito, negava o crédito. Tinha um sexto sentido, uma boa percepção.

Qual a importância da religião na sua vida?

Eu sou espírita, aliás, todos nós em casa somos espíritas.Temos um grupo e nos reunimos uma vez por semana para ler textos e lições de espiritismo. Nunca tive medo da morte. Mas hoje já estou sentindo que já estou sobrando, não deveria estar mais aqui. Dou muito trabalho aos meus filhos, cada um tem seus problemas, eu já vivi demais. Minha mulher está muito doente, eu fico muito triste com isso. Ela não sai mais de casa. Eu ainda saio. Ela é mais acomodada. Eu saio um pouco. Não saio mais porque não enxergo direito. Saio para ir ao médico, fazer exames, massagens, acupuntura. Tomo remédios, muitos remédios. Mas agora não cura mais. Muito remédio estraga a saúde.

– É isso que eu tenho para te contar minha filha. Minha vida foi muito movimentada.

Considerações finais

No dia que entrevistei o senhor Anthenor, dona Fernandina estava repousando e não tive oportunidade de vê-la.

No dia em que fui fazer a leitura da entrevista para o senhor Anthenor, dona Fernandina veio até a sala de visitas me cumprimentar e eu pedi que ela ficasse, que fizesse companhia para nós, pois essa história também lhe pertencia.

Dona Fernandina, muito discreta, sentou-se perto de nós e ficou ouvindo. Satisfeita com a leitura, concordava, dizendo que era tudo verdade o que o senhor Anthenor dissera. Quando terminamos a leitura, ela me disse que era bom envelhecer juntos e que tinha uma admiração muito grande por ele, que ele foi um grande batalhador.

Contou-me também que lê bastante e consegue enxergar bem até sem óculos. Mostrou-me um livro que está lendo no momento. É o romance: “Por uma Linha Telefônica” de Andrea Camilleri. Diz que sempre gostou de escrever poesias. Diz que são poesias dos outros, não dela. Mostrou-me um caderno grande, com as folhas amareladas, onde ela copiou as poesias que mais gosta. Na capa do caderno tem uma dedicatória a ela, feita pelo senhor Anthenor. Abriu o caderno, e leu uma poesia que ela copiou, datada de 1945. Sabe vários poemas de cor e declamou para mim um dos poemas que ela mais gosta: “O Riso e a Lágrima” de Coelho Neto “.

Nossa conversa estava deliciosa, mas eu precisava encerrar. Eu já tinha feito o senhor Anthenor perder um dos Jogos da Copa (não era do Brasil) com a minha visita e estávamos conversando há mais de 3 horas.

Perguntei ao senhor Antenor se ele queria dizer algo ou deixar alguma mensagem e ele disse que dona Fernandina poderia fazer isso melhor que ele. E ela deixou esta mensagem:

“A nossa felicidade depende do amor, da confiança e da paz do coração”.

[1] A penicilina foi descoberta em 1928, pelo cientista Alexander Fleming enquanto o pesquisador trabalhava num hospital de Londres, na Inglaterra, em busca de uma substância que pudesse ser usada no combate a infecções bacterianas (causadas por bactérias). Antes do desenvolvimento da penicilina, muitas pessoas morriam de doenças que, hoje, não são mais consideradas perigosas. Apenas machucar-se num prego, por exemplo, poderia, eventualmente, levar à morte. Graças aos antibióticos, doenças como pneumonia, sífilis, gonorréia, febre reumática e tuberculose deixaram de ser fatais. Foi somente com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, que dois cientistas, Howard Florey e Ernst Chain, retomaram as pesquisas e conseguiram produzir penicilina com fins terapêuticos em escala industrial.

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