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Envelhecer e transformar-se, notas sobre alianças entre o gênero e o tempo

Ao longo do curso do tempo, temos a oportunidade de explorar diferentes aspectos e camadas de nossos desejos, de nossa forma de ser e de estar no mundo

Sereno Sofia Gonçalves Repolês (*)


Conhecer a nós mesmos é um processo contínuo, que desenrola-se através de diferentes ciclos, ao longo de toda a vida. Percorremos caminhos e desejos que podem nos trazer surpresas, mudanças, desafios e encantos enquanto estivermos vivos! Há uma falsa ideia, bastante comum em muitos contextos socioculturais, de que o envelhecimento e a velhice dizem respeito apenas a uma experiência de declínios e limitações. Como se não reservasse espaço para vivências significativas e alegres.

O processo de envelhecimento é uma jornada constante marcada por transformações físicas, emocionais, mentais e também experienciada nas relações sociais, sejam elas mais ou menos íntimas. Nesse percurso, com frequência, podem acontecer novas descobertas sobre o mundo assim como sobre si mesmo. Ao longo do curso do tempo, temos a oportunidade de explorar diferentes aspectos e camadas de nossos desejos, de nossa forma de ser e de estar no mundo. Podemos também revisitar e reelaborar memórias e narrativas sobre nós e sobre eventos de nossas vidas. Embora algo em nós se mantenha, muito se transforma sob os efeitos do tempo. Você consegue observar esses movimentos de manutenção e transformação em sua própria jornada de vida?

Convido você a embarcar comigo em um breve sobrevoo sobre uma narrativa que nos apresenta alguns trechos dos caminhos de José Carlos[1], com quem tive contato de forma online, em uma roda de conversa, que se propunha à troca de experiências e reflexões em torno do envelhecimento transmasculino. Esse encontro aconteceu através de alguma dessas plataformas para reuniões à distância, em uma noite de primavera, no ano de 2022. Soube do encontro por um amigo que, ciente de meu interesse pela questão, enviou-me uma imagem de divulgação que anunciava uma atividade aberta e promovida por pessoas transmasculinas. Como o encontro propunha-se ao debate de meu tema de trabalho, prontamente me organizei para participar.

Para te situar melhor, conto que investigo a questão do envelhecimento de homens trans e pessoas transmasculinas, através de uma pesquisa de doutorado, que realizo em um programa de pós-graduação em Saúde Coletiva. Resumidamente, pode-se dizer que a transmasculinidade é uma categoria de gênero que diz respeito às pessoas que, ao nascer, foram designadas como mulheres; mas que, a partir de dado momento, reconhecem-se no campo das masculinidades, e vivem a chamada transição de gênero.

Preparado o terreno, retomo nossa proposta de voo sobre o que nos contou José Carlos naquela noite. Depois de algumas horas de conversas e trocas, aqueles que acompanhavam o encontro – majoritariamente pessoas trans, sendo alguns ativistas e/ou pesquisadores, e algumas pessoas que se apresentavam como familiares de pessoas trans – José Carlos pede a retomada da palavra. Naquela noite, havia nos contado que era médica[2], e que sua companheira tem um filho que havia recentemente iniciado sua transição de gênero. Compartilhou a preocupação que ele e a mãe cultivaram diante da manifestação de Douglas[3], então com 16 anos, e de seus anseios pela realização de modificações corporais. E os caminhos desse trio em busca de orientações e acompanhamentos profissionais para que o processo fosse vivido da forma mais segura e bem assistida possível.

Quando retoma a palavra, já nesse momento próximo ao horário de encerramento daquela atividade, o foco de José Carlos não era mais o processo de transição de gênero do enteado, que ao nascer foi definido como menina, e que reivindicou para si um nome, uma corporalidade e uma identificação de gênero no campo das masculinidades. O foco tampouco eram análises e explicações dos aspectos bioquímicos envolvendo o uso de hormônios, com que nos brindara há pouco.

José Carlos nos narra momentos e situações de sua trajetória de vida, desde a infância, passando pela adolescência, chegando à fase adulta, em que havia vivido conflitos e questionamentos em relação ao gênero. Conta-nos sobre as brincadeiras que preferia na infância, em contraposição àquelas que era autorizado a brincar. Conta também sobre jeitos de corpo, de movimento, de comportamentos, desejos, vestimentas… Códigos socioculturalmente atribuídos a este ou àquele gênero. Códigos que expressou de distintas formas, em diferentes fases da vida; mas que, por muito tempo, por causa da imposição social de um gênero feminino, pareciam inalcançáveis ou impossíveis de tomar para si.

Nesse revisitar das memórias, José Carlos chega a momentos mais próximos ao presente, e nos diz como a convivência com Douglas, e com seu processo de compreensão e transformação de si, desencadeou movimentos de reflexão sobre sua própria identificação de gênero. Diz que havia decidido se permitir refletir e se conhecer melhor, o que o levou, aos 63 anos de idade, a compreender que, em suas palavras, sua “verdadeira expressão de gênero” era masculina. Há algumas semanas havia decidido modificar seu nome anteriormente feminino, para José Carlos. E que, atualmente – naquela ocasião – tinha planos de realizar consultas e exames médicos nos próximos meses, com o intuito de iniciar uma terapia hormonal com testosterona. Seu objetivo era de promover mudanças corporais que reflitam e corporifiquem sua identificação com o gênero masculino. Performando para/em si um corpo em mais acordo com a forma com que se sente, que se expressa e que deseja ser visto e tratado socialmente.

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Os processos observados através desse sobrevoo relacionam-se àquilo sobre o que falava anteriormente, nas primeiras linhas desse texto; ao autoconhecimento, à transformação, à mudança, às surpresas da vida. Para algumas pessoas trans essas são boas palavras para dizer desse caminho que leva à expressão de corporalidades e identidades outrora desconhecidas por nós mesmos – ou que há tempos nos acompanham, com maior ou menor intensidade, e por aqueles com quem nos relacionamos. Junto a esse movimento de (re)descobertas de si, abrem-se as portas para novas perspectivas que podem nos direcionar à realização de mudanças significativas.

A maturidade e a velhice, ao contrário do que muitos pensam, pode ser marcada por uma importante busca de autenticidade, aprofundamento e transformação da própria vida. E pode ser um ambiente propício para que essas percepções, antes adormecidas, desconhecidas ou postas à espera, ganhem espaço para serem expressas e vividas. Independente da idade ou da fase da vida em que nos encontramos no presente. Eu, particularmente, acredito não haver hora certa ou errada para viver e expressar-se em maior harmonia e conformidade com aquilo que sentimos sobre nós mesmos.

Para além de minha modesta opinião, teóricas e teóricos do campo dos estudos de gênero e sexualidade – como Guilherme de Almeida, Leonardo Peçanha, Jaqueline Gomes de Jesus, Viviane Vergueiro, Mauro Cabral, Érica R. de Souza, Judith Butler, Paul B. Preciado, Jack Halberstam, dentre tantos outres – afirmam que podemos ter experiências múltiplas ao longo de toda a vida, dando corpo a diferentes formas e nuances das expressões de masculinidades e feminilidades. Segundo essa compreensão, é totalmente pertinente – e comum –  que as pessoas experienciem, ao longo de suas vidas, a percepção de si como mais feminina em um determinado período, e em outro mais masculina, e vice-versa. Isso não diz respeito apenas às pessoas trans, pessoas cis[4] também podem ter mudanças na expressão de seu gênero ao longo da vida, e a maturidade que o envelhecimento proporciona pode ser de grande ajuda para que a pessoa possa se sentir mais livre para brincar e divertir-se consigo, para experimentar outras e novas possibilidades.

Notas
[1] Nome fictício criado com intuito de preservação de identidade.
[2] Mesmo identificando-se como uma pessoa transmasculina, José Carlos, na ocasião, apresentou-se e falou de si, em alguns momentos, utilizando pronomes femininos. Optamos, no presente texto, por preservar esse trânsito entre gêneros de forma similar ao que foi observado. O que nos mostra a possibilidade de coexistência de gêneros que, a princípio, são compreendidos como incompatíveis ou opostos. Esse exemplo sinaliza a possibilidade de um reconhecimento sobre a fluidez de uma pessoa entre os espectros de feminilidade e masculinidade.
[3] Nome fictício criado com intuito de preservação de identidade.
[4] Pessoas cis ou cisgêneras são aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído e imposto ao nascer.

(*)Sereno Sofia Gonçalves Repolês – Doutorando em Saúde Coletiva pela Escola Paulista de Medicina da UNIFESP, onde pesquisa envelhecimento transmasculino. Cientista social e mestre em Antropologia pela UFMG, atua como pesquisador, docente e consultor sobre os temas: teorias e práticas de gênero e sexualidade, envelhecimento, cuidado e atenção à saúde LGBT+, antropologia e filosofia do corpo, da saúde e doença. Constrói coletivamente estratégias e tecnologias de cuidado comunitários, inspirados por princípios da Medicina Tradicional Chinesa e pelos Saberes Trans. E-mail: srepoles@unifesp.br

Foto destaque de Alexander Grey/pexels.

Obs.: Este texto é resultado da pesquisa intitulada “Transmasculinidades e Envelhecimento: perspectivas sobre cuidado e atenção à saúde”, contemplada pelo Edital Acadêmico de Pesquisa 2022, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento.


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