Entrevista: Beatriz Monteiro Longo

A pesquisadora Beatriz Monteiro Longo, do Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz (CPqGM), unidade da Fiocruz na Bahia, desenvolve uma pesquisa para testar o uso de células-tronco no controle da epilepsia. Os primeiros resultados do experimento revelam que as células-tronco extraídas da medula óssea podem ajudar a regenerar o tecido cerebral. O estudo, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), foi apresentado à comunidade científica na 19ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental e teve enorme repercussão, tanto no meio científico quanto na imprensa. “De lá pra cá não paro de dar entrevistas!”, comenta Beatriz.

 

Visão geral do córtex cerebral de um animal epiléptico.
Crédito: CPqGM/Fiocruz

Como se adquire a epilepsia e quais são os sintomas?

Beatriz: De modo geral, epilepsia é definida com um distúrbio cerebral que se manifesta por crises epilépticas (convulsões). A epilepsia pode ter muitas causas. Pode ser causada por predisposição genética, anomalias congênitas ou lesões perinatais (na hora do nascimento), transtornos metabólicos (hipoglicemia, hipocalcemia, hipóxia), meningites, neurocisticercose (parasitismo). Eu estudo a epilepsia do lobo temporal, um tipo de epilepsia sintomática que pode ter causas como tumores, lesões, traumatismos cranianos e convulsão febril que afetam estruturas localizadas no lobo temporal.

Em que consiste o seu projeto?

Bom, vou fazer um resumo da história toda. Na pós-graduação trabalhei com epilepsia experimental pesquisando possíveis tratamentos que diminuíssem a freqüência ou abolissem as crises. Recentemente, os estudos com células-tronco me chamaram atenção para a perspectiva de um possível tratamento para epilepsia, uma vez que pesquisas em outras áreas (por exemplo, em doença de Chagas e lesão medular) e mesmo em sistema nervoso (esclerose lateral amiotrófica, AVC), têm apresentado resultados promissores.

Deriva daí a idéia de pesquisar sobre isso. O título do projeto é “Uso terapêutico de células tronco na regeneração dos neurônios e no controle de crises convulsivas em modelos experimentais de epilepsia”. A pesquisa começou em fevereiro de 2004, deve terminar no final de 2006 e é desenvolvido no Laboratório de Engenharia Tecidual e Imunofarmacologia da Fiocruz da Bahia.

Quais são as fases da pesquisa e em que etapa está hoje?

O projeto tem duas etapas distintas. Na primeira, vamos investigar a dinâmica das células-tronco, provenientes da medula óssea, na crise epiléptica aguda, e responder questões sobre se células-tronco (vindas da medula óssea) aumentam na corrente sanguínea, se migram para o cérebro durante a crise aguda, em que tipos celulares diferenciam, neurônio ou glia, e em que área cerebral isto acontece. A compreensão do que acontece nesta fase aguda é extremamente importante para a etapa seguinte do projeto.

Nesta segunda etapa, vamos verificar a possibilidade de tratar os animais epilépticos crônicos (que apresentam crises espontâneas e recorrentes) com células-ronco de medula óssea e avaliar se, com o tratamento, haverá alguma diminuição da freqüência e alteração no padrão das crises, além de avaliar o grau de lesão no próprio cérebro.

Estou utilizando células de medula óssea de camundongos adultos, injetadas nos animais epilépticos. Os experimentos de indução de epilepsia, aguda e crônica, são desenvolvidos em camundongos e ratos. Em alguns protocolos, esses animais são “quimerizados”, ou seja, camundongos irradiados ou ratos com falha no sistema imune que recebem um transplante (injeção na corrente sanguínea) de medula óssea de outro indivíduo.

As quimeras, juntamente com o protocolo de indução de crise epiléptica, são uma excelente combinação de desenho experimental para cumprir os propósitos do projeto. Através destes modelos animais, vamos investigar a migração, proliferação e participação das células-tronco em crises epilépticas, nos períodos agudo e crônico. Nossa hipótese é que células-tronco da medula óssea possam contribuir para a regeneração do tecido nervoso após a indução de crises epilépticas. Esperamos, por conseqüência, desenvolver uma estratégia terapêutica para o tratamento da epilepsia.

Que são células glia? Qual é a função dessas células?

São células do sistema nervoso que, diferente do não neurônio, não processam informação, mas possuem outras funções importantes, como dar suporte e estrutura ao tecido nervoso, formar a barreira hemato-encefálica, fagocitar, além de funções nutritivas e de “embainhamento” axonal. As células gliais têm participação importante na recuperação de lesão neuronal e regeneração do tecido nervoso.

Qual o efeito das células-tronco sobre a epilepsia?

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Como o sistema nervoso central tem uma capacidade de regeneração bastante limitada, a descoberta de neurogênese (multiplicação de células nervosas) no cérebro de mamíferos adultos abre possibilidades interessantes de aplicações clínicas, que envolvem a participação de células-tronco neurais que geram esses novos neurônios.

No entanto, a proliferação dessas células parece não ser suficiente para regenerar amplas lesões no SNC. Aqui entra a idéia de se fazer um tratamento suplementar com células tronco provenientes da medula óssea. O que determina a diferenciação de uma célula-tronco é o ambiente onde ela se encontra. Por algum motivo, ainda desconhecido, essas células se mobilizam para áreas que estão sofrendo algum estímulo ou stress, aqui no caso a crise epiléptica. Ao circular pelo cérebro, elas podem, além de se diferenciar, auxiliar de outras formas, secretando substâncias, sinalizando, enfim re-equilibrando e re-estabilizando o ambiente (foco da crise).

A epilepsia pode ser curada por meio deste tratamento ou apenas controlada?

Ainda não posso responder, pois estamos no início desses estudos. Testamos animais na fase aguda, quando as crises recorrentes e espontâneas ainda não se manifestaram. Na verdade, acredito que o tratamento na fase aguda da doença (na primeira manifestação epiléptica do paciente) seja mais efetivo e talvez até possa reverter o quadro e suprimir crises posteriores.

Na fase crônica, quando a doença já está instalada, talvez o tratamento possa auxiliar na diminuição da freqüência das crises. Sou bastante otimista quanto ao andamento das pesquisas nesta área e tenho acompanhado de perto os resultados das pesquisas com células-tronco de alguns grupos no Brasil que trabalham com outras doenças. Os resultados são bastante animadores. Resta agora testar as possibilidades e tentar responder essas questões.

Os medicamentos tradicionais para epilepsia causam muitos efeitos colaterais. Existe previsão sobre a ocorrência destes efeitos no tratamento com células-tronco?

Nos testes com animais não há nenhum efeito colateral. Acredito que também não ocorrerão em pacientes, uma vez que o transplante é autólogo, ou seja, com células do próprio paciente. Este tratamento (transplante de medula em pacientes) já vem sendo utilizado em pacientes chagásicos que têm melhora significativa do quadro sem apresentar nenhum efeito colateral.

Qual a via de administração das células-tronco ao paciente? Há algum meio de fazer com que migrem para o cérebro?

Estou trabalhando com células-tronco de medula óssea injetadas na corrente sanguínea. É um procedimento mais simples e me coloca em vantagem em relação aos tratamentos mais invasivos (cirurgia) e às técnicas de cultura de células tronco neurais.

No experimento, induzimos uma crise convulsiva prolongada (status epilepticus) em camundongos quiméricos transplantados com células de medula óssea de animais geneticamente modificados para expressar uma proteína fluorescente em todas as suas células (GFP), e observamos que essas células fluorescentes injetadas na corrente sanguínea migram para o cérebro em grande quantidade durante ou logo após a crise convulsiva (fase aguda). Sabemos que uma pequena porcentagem dessas células é de células tronco, que podem se diferenciar em neurônios ou glia, mas ainda precisamos identificá-las com marcadores específicos. É um resultado interessante que indica que o tratamento com células-tronco de medula óssea seria viável pelo menos na fase aguda, quando a barreira hemato-encecefálica está aberta e permite a passagem dessas células para o sistema nervoso central. Isso indica que um tratamento baseado em transplante de células tronco também seria possível em outras doenças ou traumatismos cerebrais que apresentam uma fase aguda com abertura ou falhas na barreira. Ainda não temos resultados sobre o controle das crises (fase crônica), mas espero tê-los em breve. Será a próxima etapa do trabalho.

O tratamento seria dado a intervalos regulares ou somente no momento das crises?

Esse protocolo também deve ser testado experimentalmente em animais para verificarmos qual a janela terapêutica, volume e via de injeção do transplante ideais para o tratamento. Uma ferramenta que considero muito elegante para esse estudo é a aplicação de dois transplantes de medula de doadores transgênicos diferentes (GFP e beta-gal). Isso permite rastrear com facilidade células no cérebro do animal hospedeiro que estavam presentes antes da indução da epilepsia (GFP) e células que foram transplantadas depois da primeira crise do animal (beta-gal), e comparar os transplantes em momentos pós-crise diferentes.

Há previsão de testes em humanos?

Bem, não é simples de prever. Primeiro é preciso concluir todo o protocolo experimental em animais. São três anos de projeto, mas não creio que sejam suficientes para confirmar todos os dados empíricos. Depois, se os dados forem confirmados, o projeto deve ser encaminhado para o Conep (Conselho Nacional de Ética em Pesquisa) para que o tratamento em pacientes epilépticos seja avaliado. Por fim, o tratamento só é de fato aprovado depois de várias fases de testes e isso demanda anos.

Pesquisas com células extraídas de adultos enfrentam menos questões éticas e religiosas que aquelas que utilizam células-tronco de embriões? O que pensa sobre esta discussão sobre o uso de embriões em pesquisas?

Existem vantagens e desvantagens em se utilizar células-tronco adultas em relação a células-tronco embrionárias. As embrionárias têm capacidade ilimitada de se diferenciar em qualquer tipo celular. São pluripotentes e podem se proliferar em cultura durante muito tempo sem que se diferenciem. As células-tronco adultas se diferenciam rapidamente e o potencial de diferenciação em tipos celulares é limitado, o que significa que é necessário um número maior de células tronco adultas em terapias celulares. Uma enorme vantagem de usa-las é que praticamente não existe questão ética ou religiosa, sua utilização já foi autorizada. No caso do paciente epilético, células do próprio paciente poderiam ser transplantadas sem rejeição pelo sistema imune. Confesso que tenho acompanhado de longe as decisões do Congresso Nacional sobre células-tronco embrionárias e clonagem terapêutica. Sei que é controverso, mas prefiro trabalhar à margem das questões éticas e religiosas que vêm sendo discutidas. Minha opinião é que, em relação à produtividade científica, estamos perdendo terreno. A distância, em termos biotecnológicos, que temos dos países que aprovaram o uso de célula-tronco embrionária tende a aumentar e será cada vez mais difícil diminuir as diferenças em relação a esses países.

Fonte: Adriana Melo – CCS / Fiocruz

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