Ensaios sobre a subjetividade contemporânea

Há mais de uma década Denise Sant’Anna pensa e escreve sobre o que ocorre com nossos corpos na modernidade. Corpos de passagem reúne ensaios escritos durante a década de 90; são textos autô­no­mos que se enca­deiam numa seqüência analítica de modo a funcionar também como capí­tulos de um único texto longo. Um texto em que a autora examina de vários ângulos diferentes seu objeto, remetendo o leitor sempre à mesma pergunta: o que vem a ser, afinal, um corpo humano?

 

 

passagemO que é então um corpo: um conjunto de órgãos, reflexos, sensações? um con­junto de órgãos, reflexos, etc., que se reconhece em uma imagem mais ou menos estável? um conjun­to de órgãos + a sua imagem + os discursos que o desig­nam e o valorizam? Ao que se acresce um rit­mo, uma velocidade, acelerações e desacele­ra­­ções; territórios geográficos e territórios imaginários; e também suas extensões mecânicas, estéticas, médicas: um corpo é um corpo e seu automóvel, um corpo e suas roupas, um corpo e seus remédios. (…).

Nossos corpos nos “pertencem” muito menos do que acreditamos. Não são proprie­dades nossas – eles nos ultrapassam. Eles são falados e “incorporados” pela ideologia, pelo mercado, pelas diversas modalidades da microfísica do poder. Por isso, os ensaios de Denise Sant’Anna voltam-se para a questão de uma ética dos corpos. A idéia de “passagem”, ao longo do livro, vai de um extremo a outro de seus diferentes sentidos. Se no primeiro capítulo a autora analisa a fugacidade e a incon­sistência dos corpos que percorrem os dispositivos contem­porâneos de passagem-sem-rito, represen­tados pelos aeroportos e hospitais, no final a idéia de passagem faz referência a um modo de encarar a vida como devir, como fluxo do tempo que não podemos deter, num corpo que é possível com­partilhar não só com os outros corpos mas com o mundo que o rodeia.

Neste caso, a idéia de passagem pode ser entendida como mudança de um estado para outro, afetando os corpos e a subjetividade, como na possessão religiosa, no envelhecimento, no êxtase amoroso, no êxtase criativo. Ao corpo do indivi­dualismo narcisista que se pensa como imagem perfeitamente fotogênica, envergonhado de suas vísceras e de sua fisiologia; e também ao corpo-mercadoria transportado, alimen­tado, retalhado, vendido e comprado pelo capital global, científico, sexológico e turístico, opõe-se o corpo-em-ato, corpo que se confunde com a ação que pratica, afetando a natureza e sendo afetado por ela, tornando-se na ação uma terceira coisa que não é fruto do poder de um sobre o outro. Submissão e dominação neste caso dão lugar a um outro modo de estar com o mundo, com o meio circundante, com o outro. À brutalidade dos imperativos de felicidade a qualquer custo, Denise opõe a sutileza, a delicadeza e uma certa reverência diante dos enigmas da vida.

Sobre a autora

Denise Bernuzzi de Sant’Anna é professora de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutorou-se em 1994, na Uni­ver­sidade de Paris VII, com tese sobre a his­tória do embelezamento feminino. Publi­cou os livros O prazer justificado: história e lazer (Mar­co Zero, 1994), Políticas do corpo (Estação Liber­dade, 1995), e diversos artigos sobre as rela­ções entre o corpo e a cultura contem­po­rânea.

A autora sobre o livro

Estes textos “resultam de reflexões sobre a atual valorização do corpo humano, acompanhada por sua intensa exploração comercial. Expressam os limites do imperativo da beleza e da saúde perfeitas, assim como a onipresença da mobilidade corporal em expansão: silhuetas sempre de pas­sagem, percepções sem detença, indivíduos reduzidos a turistas, consumidores vorazes de novidades, organismos liberados de seu patrimônio cultural e genético, incessantemente ameaçados pelo risco do descarte e do isolamento”.

Trechos

1. Sócrates e o peso do corpo

“Por vezes, a necessidade de desacelerar e de viver lentamente é inconsciente, involuntária, ou considerada ‘dentro do ritmo normal’. O adjetivo lento resulta de comparações e é fruto de medidas, sempre culturalmente determinadas, historicamente sujeitas a modificações inusitadas. Quando a histórica conquista da velocidade cria novas lentidões como se estas fossem somente seus opostos, todo o peso material tende a ser percebido como mero obstáculo a ser ultrapassado, aniquilado. O peso do corpo é um deles. Sócrates já havia sido porta-voz de um antigo sonho: escapar da resistência da matéria, pois “o corpo nos causa mil dificuldades”. (p. 19)

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2. Corpo fronteira

“Foi necessário, igualmente, transformar o corpo num território privilegiado de experimentações sensíveis, algo que possui uma certa inteligência que não se concentra apenas no cérebro. Foi preciso, ainda, libertá-lo de tradições e mora­lismos seculares, fornecer-lhe um status de prestígio, um lugar radioso, como se ele fosse uma alma. Desde então foi fácil considerá-lo uma instigante fronteira a ser vencida, explorada e controlada.” (p. 70)

3. Economia do corpo

“…a economia está bastante interessada na realidade corporal, sobretudo em nossos dias. Alguns economistas chamaram a atenção para essa vocação do capitalismo atual de investir em ‘três esferas infinitas’: a gestão da sociedade, a reprodução da Terra (ar, água, vegetais) e a reprodução do humano. O interesse econômico que o corpo desperta deveria servir para esclarecer à sociedade quais são os grupos que ganham e quais são os que perdem com a transformação das diversas partes do humano em equivalentes gerais de riqueza.”(p. 74)

4. Dolly e o prazer sexual

“Se com a pílula anticoncepcional conquistou-se o prazer sexual sem a reprodução da espécie, com as novas tecnologias conquista-se o direito de reproduzir sem prazer sexual. A inovação exposta na experiência que gerou a ovelha Dolly comprova que é possível dissociar inteiramente a sexualidade da reprodução. Mas a potência do gesto criador desta ovelha não repousa apenas sobre essa dissociação. Ela expressa, em grande medida, o quanto é flutuante o estatuto de seres vivos criados pelas biotecnologias: qual seria, por exemplo, o estatuto ontológico de toda a imensa população de seres transgênicos? Quando um inseto é acoplado a um mecanismo industrializado, como e onde classificá-lo?” (p. 93)

5. Corpo ignorante

“A histórica divisão entre corpo e alma expressa, em grande medida, esta dificuldade, principalmente a partir da época moderna, quando o corpo passou a ser visto muito mais como aquilo que se tem do que aquilo que se é. Pelo menos nas sociedades ocidentais, esta separação desdobra-se em muitas outras, sempre afirmando que o pensamento é algo infinito e inteligente, enquanto o corpo é finito e ignorante.” (p. 107)

6. Miséria sexual

“Pelo menos desde Marx, é sabido o quanto o capitalismo fabrica miséria econômica, e desde Foucault sabe-se que a liberação do sexo e sua colocação no discurso produziu miséria sexual. Hoje, a produção da miséria do afeto por si implica, imediatamente, a escassez de afeto pelo outro.” (p. 119)

7. O elogio da sutileza

“Quando o cavalheirismo e a feminilidade se tornam palavras de ordem, a sutileza é a primeira a se esquivar, a se cobrir de vergonhas diante de suas sedutoras inflexões doravante consideradas patéticas. Pois a sutileza inclui zonas de sombra, e estas não significam caos nem, necessariamente, silêncio. O gesto sutil é em geral potente justamente porque sua força não se explicita de uma só vez, como se se tratasse do último ou do melhor gesto. A sutileza não se concilia bem com tais romantismos fatalistas, nem com a necessidade de aproximar o começo do fim. Ela também não se adapta ao fascínio pelas palavras (ou pelos gestos), que se impõem como definitivos. De fato, a sutileza não é um fast-food.” (p. 124)

Título: Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea
Autor: Denise Bernuzzi Sant´anna
Editora: Estação Liberdade
Cidade: São Paulo
Ano: 2001

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