A história da ViaGutenberg, uma empresa social, se confunde com a experiência de um coletivo de pessoas que atuam em papéis muito diferentes e complementares, contribuindo com novas proposições para temáticas complexas de nossa contemporaneidade, como a velhice, alinhada à canção de Arnaldo Antunes: “A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer”.
Beltrina Côrte / Fotos: Alessandra Anselmi e Arquivo ViaGutenberg
Trata-se de uma rede de pessoas que se conectam a partir de alinhamentos pessoais e especialidades profissionais, liderada por Paulo Puterman e Sergio Serapião, sócios-fundadores. Sergio (foto), mais Geraldo Milet, foram entrevistados pelo Portal, a fim de conhecermos o funcionamento dessa comunidade em relação à agenda Saúde & Envelhecimento, mais especificamente o projeto Circuito Maior Idade, em que uma equipe multidisciplinar de profissionais – gerontólogos a administradores, gestores públicos e ambientais, dentre outros -, atua utilizando pesquisas, dados, indicadores, frameworks nacionais e internacionais para atingirem cada vez mais a excelência na entrega de serviços específicos ao setor. Enfim, atuar como rede é a escolha da ViaGutenberg.
O que mobilizou e conecta essa rede de pessoas que forma a Via Gutenberg?
Sergio Serapião e Geraldo Milet – Foram inquietudes comuns a respeito desta temática tão atual de nossos tempos, o envelhecer. Juntos, buscamos desenvolver novas respostas para as seguintes perguntas: Como redefinir e readequar o papel da pessoa maior de 60 anos na sociedade brasileira e mundial? Tal indivíduo já cumpriu seu papel social e agora deveria recolher-se em seu aposento? Sua experiência vasta deve ficar sem ser compartilhada com outras gerações? As estruturas de trabalho, diversão, mobilidade, para dizer algumas, estão adequadas para as demandas e possibilidades destas pessoas? Como fazer esta transição de papéis (sociais ou não) e como alterar este paradigma? Questões como essas são as que nos movem, ainda que não tenhamos todas as respostas. Pois, sim, acreditamos que as pessoas que hoje têm mais de 60 devem ser percebidas e se perceberem de forma mais ampla na e pela sociedade, governos e organizações, nos dias de hoje e no futuro. O intuito é de redefinir a cidadania para a pessoa maior que 60, de forma que ela exerça o seu melhor para a sociedade, família e para si, realizando-se plenamente e tendo o tratamento adequado em retribuição. Não por caridade ou pena, mas por respeito e dignidade. Em entendimento à sua contribuição feita ao País, é possível redefinirmos a lógica social atribuída ao indivíduo idoso, de forma que seja possível atingirmos patamares de sustentabilidade, em suas mais diversas facetas, na sociedade brasileira.
E quem forma a rede?
Desde janeiro de 2014, Geraldo Milet, profissional que já era parte da comunidade ViaGutenberg- assumiu uma posição de piloto em algumas das iniciativas do eixo Saúde & Envelhecimento, junto com Javiera Macaya, que copilota o Circuito Maior Idade desde a virada do ano. Eles, mais Gabriela Carvalho, reforçam o time de especialistas em gerontologia e parceiros nossos.
O que vem a ser o Circuito Maior Idade?
O Circuito Maior Idade é um programa que busca ampliar as possibilidades de atuação e participação social de um público sênior na sociedade, partindo das possibilidades reais de vivências sociais coletivas. Sua proposta é de ser uma opção de integração social, acesso à cultura de qualidade, complementada por atividades físicas, cognitivas e culturais. O conjunto de atividades do Circuito, quando vivenciadas frequentemente, traz melhoria na qualidade de vida dos participantes. Ao interagirem nas atividades, tais indivíduos tornam-se protagonistas, multiplicadores, facilitadores e outros papéis mais, em diversos contextos sociais. Um participante ativo, multiplicador, apropria-se dos espaços públicos e culturais de sua cidade. E, por consequência, tais indivíduos, agora utilizadores das ferramentas públicas, passam também a pressionar os gestores públicos por melhorias na formulação e implementação de políticas sociais.
Como, por que e quem o desenhou?
O Circuito Maior Idade surgiu a partir de uma demanda do Grupo Segurador BBMAPFRE por desenvolver uma atuação coerente, de longo prazo, em prol do indivíduo sênior. Com a proposta em mente, nós, ViaGutenberg, procuramos por instituições, projetos e grupos nos quais poderíamos desenvolver parcerias. Encontramos, porém, instituições incipientes, com dificuldade de financiamento, e modelos de governança e gestão ainda muito frágeis. Não haviam políticas públicas estabelecidas ou consolidadas. Assim, nossa recomendação foi trabalhar em conjunto com as principais instituições e lideranças num processo de formação de rede. O que era um projeto pontual, acabou tornando um assunto no qual mergulhamos e nos contagiamos e vimos que realmente poderíamos contribuir ao agregar gestão e articulação. No início dos trabalhos contamos com o suporte técnico de Ruth Lopes, professora da PUC-SP, e de Regina Arantes, na época pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento, coordenado pela professora Ruth. Com o tempo, Regina passou a oferecer o suporte gerontológico ao projeto, sendo sucedida, posteriormente, por outros especialistas de notório saber, como Sandra Gomes, Áurea Barroso, entre outros, que somaram e fortaleceram o Programa.
Da mesma forma, fizemos uma ampla rede de parcerias, e, com o tempo, a comunidade ViaGutenberg de especialistas e parceiros cresceu exponencialmente, sustentando satisfatoriamente as iniciativas e seus resultados nos últimos 7 anos.
Como é constituído o Circuito Maior Idade?
O Circuito é constituído por um leque de projetos cuja própria ViaGutenberg concebe e gerencia, como o Cine Maior Idade. Mais do que isso, nossa aspiração é a de atrair uma ampla rede de organizações culturais, sociais e comerciais que tenham interesse em propor suas próprias atividades e projetos, objetivando a troca de experiências, informações, metodologias de gestão e acesso a capital. Acreditamos que somente um trabalho em consórcio pode realmente permitir que avancemos em qualquer agenda social, inclusive em Saúde & Envelhecimento. Assim, o papel dos projetos próprios que propomos e gerenciamos é muito mais um exemplo de projeto que poderia entrar no Circuito do que nosso trabalho em si. Nosso trabalho está em advogar em a favor das diversas causas, junto a empresas, governos, academia e sociedade civil.
Além do Cine Maior Idade, que outros projetos foram desenvolvidos pelo Circuito?
Já articulamos e desenvolvemos projetos para dança, teatro e artes visuais com renomadas organizações de cada uma destas áreas, além da presença do governo. Cada instituição cultural que se envolve potencializa seu trabalho ao ampliar a acessibilidade e promover a cultura de forma específica para o público acima de 60. Isso é muito mais complexo do que trabalhar com o público infantil e escolas – os departamentos educacionais nos museus, por exemplo, já estão plenamente estabelecidos, enquanto que o cuidado específico para se montar uma exposição ou festival de cinema para o público maior que 60, ainda seja raridade. Mais recentemente, a partir de resultados bem sucedidos de projetos liderados pela Unifesp, introduzimos no Circuito Maior Idade (CMI) os componentes de atividade física e cognitiva.
Quem procura o Circuito Maior Idade?
Se por um lado o Circuito se viabiliza com profissionais e lugares provindos de organizações parceiras, de outro, o público, é de relevante complexidade, pois as parcerias se articulam num segundo nível com organizações que agremiam o público idoso. Privilegiamos o atendimento de grupos e não de indivíduos isolados. Isto porque acreditamos que o ser humano é um ser social. E desde a infância pertencemos a grupos, na escola, depois crescemos e pertencemos a universidade, depois ao trabalho. Depois chega a aposentadoria, onde a sensação de não-pertencimento visita os indivíduos. O Circuito Maior Idade incentiva o pertencimento, ao grupo do bairro, da igreja, do clube do futebol, do xadrez, e assim por diante. Percebemos logo no início do trabalho que estes grupos não tinham visibilidade, nem grandes redes conectadas. As escolas, por exemplo, são conectadas por secretarias e pelo ministério, assim, os educadores pertencem a uma associação de profissionais. Se tentamos traçar um paralelo com as agremiações de organizações de atendimento ao idoso, notaremos que são agremiações mais frágeis, mais imaturas (quanto às conexões). Buscamos também atuar nestas, fortalecendo as políticas públicas de secretarias e as redes já existentes. Atuar via redes é a escolha da ViaGutenberg, ao invés de uma estratégia tomada por “mais fácil” – que seria ir direto ao público, individualmente.
O Circuito é dirigido então a…
Dizemos que o Circuito Maior Idade dirige-se à seguinte rede de atores: a) o cidadão maior que 60 (na prestação de serviços, no oferecimento de atividades); b) profissionais que atuam com idosos (na articulação e formação desses); c) organizações culturais, sociais e outras instituições que trabalham com idosos (na forma de parcerias); d) universidades e centros de estudo de idosos e secretarias de governos que buscam construir políticas públicas para o idoso (na forma de oportunidade de pesquisa e avaliação de resultados para saúde, em conjunto com o programa).
Onde e como o Circuito atua/acontece?
Até 2013 atuamos no Estado de São Paulo, principalmente na capital, além de projetos pontuais em outros municípios. A partir de 2014 levaremos o Circuito para todo território nacional, nas localidades onde identificarmos demanda, por um lado, e organizações parceiras, por outro. Este é o nosso grande desafio: traçar essa teia de relações e ampliá-la, a partir da bem sucedida experiência nos sete anos de programa em São Paulo. Somos muito otimistas com 2014 e futuro, pois somos privilegiados de assistir e participar de uma revolução em prol de cidadania, ao renascer este novo cidadão +60!
Como as pessoas podem participar?
As inscrições, gratuitas, estarão abertas para grupos de indivíduos +60 e para organizações-rede que reúnem ou trabalham com tais grupos, isso no que se refere às atividades em São Paulo – capital. Basta entrar em contato por e-mail para [email protected], sinalizando o interesse. Temos uma agenda que reúne as oficinas culturais, cognitivas, físicas e de sessões de cinema, e esta ficará disponível em nossa página do Facebook.
E no território nacional?
O atendimento em todo o território nacional, que é a novidade, virá a partir de abril, e possibilitará que as pessoas interessadas, profissionais interessados e instituições inscrevam-se no site da ViaGutenberg (https://www.viagutenberg.com.br), pois logo o Circuito ganhará seu site próprio! Portanto, o CMI São Paulo terá um “clone”, um “reflexo”, também no mundo virtual, visando ampliar o alcance do programa e seu impacto. Claro que o próprio desenvolvimento e implementação nos oferecerá muito aprendizado, novas possibilidades e limitações que até então não identificamos.
Como as pessoas interessadas poderão se inscrever?
Haverá 3 tipos de cadastro: 1) Grupos de idosos; 2) Organizações culturais interessadas em trabalhar com idosos; e 3) ONGs, academias interessadas em prestar serviço para idosos. Este tripé é a base para se realizar o Circuito em qualquer localidade.
Quais serviços serão oferecidos pelo CMI?
Do nosso lado, além de articular as partes, promoveremos, serviços para cada um destes atores, como a) Fórum de participação e discussão virtual para idosos, para que indivíduos e grupos troquem e se fortaleçam (num futuro, por ideal, objetiva-se uma Carteirinha do Circuito, para que os indivíduos e organizações se identifiquem); b) Organizações terão acesso ao programa CMI, no qual poderão trocar informações e experiências, melhores práticas de gestão, assim como usufruir do sistema de gestão de resultados SMRI da ViaGutenberg; e c) ONGs e academias poderão oferecer e receber formação, além de oportunidades de formatar serviços de forma continuada.
A ViaGutenberg estará assim conectando demandas e ofertas?
Acreditamos que a articulação desta rede permitirá que consolidemos as demandas e ofertas; na medida em que tivermos um encontro de interesses, os grupos serão formados para oficinas e sessões presenciais. Nas localidades onde algum dos três elementos falhar (técnico, grupos +60 ou organizações), buscaremos suprir a demanda daqueles que se inscreveram com experiências virtuais, seja de troca de conhecimento, oficinas ou mesmo de informações.
Vocês já contam com parcerias?
Sim, na divulgação do Circuito teremos dois importantes parceiros: o Portal do Envelhecimento e o Portal da Terceira Idade, além, é claro, de parcerias com as secretarias de assistência e direitos humanos. Contaremos também com universidades parceiras, como a Unifesp e USP-EACH, e com organizações de classe, como a Associação Brasileira de Gerontologia. É relevante informar que trabalhamos com o conceito de todas as atividades serem gratuitas para o beneficiário. Por isso, dedicamos tamanho esforço em entender o que cada parte ganha com o processo. Acreditamos que nossos recursos vão muito além de remunerações financeiras. Podemos ampliar a visão e subsidiarmos pesquisas, por exemplo, ou fomentarmos atividades de voluntariado, pro-bonno.
Como o Circuito será financiado se as atividades serão gratuitas para os +60?
Acreditamos que grande parte do financiamento possa vir de empresas cidadãs, como o Grupo Segurador BBMAFRE e a Kimberly-Clark já o fazem. Acreditamos na necessidade de construção de coalisão em organizações cidadãs para construir novas soluções. Com os resultados constatados, entendemos que o poder público terá interesse em “adotar” o Circuito para diminuir gastos com saúde pública – médicos, remédios, internações em hospitais, instituições de longa permanência. Os indicadores de Previdência, por exemplo, apontam para um colapso do sistema no curto prazo, pois o custo de tratar doenças é altíssimo. Acreditamos que o Circuito seja uma das possibilidades de ampliar o tempo de autonomia e independência de idosos, e consequentemente, minimizar o custo efetivo para a sociedade, governos, empresas, familiares e, claro, para o próprio idoso, que passa a usufruir de uma vida melhor.
Qual é a importância do Circuito Maior Idade para um bom longeviver?
Há muito que se estruturar e avançar para que tenhamos um bom ambiente para que pessoas a partir de 60 possam exercer sua plena cidadania. O CMI é apenas um elemento dentro dessa ampla engrenagem que permite um bom longeviver. Acreditamos que o aumento na expectativa de vida da população seja um bônus para as pessoas, e não um ônus. Assim, o Circuito dissemina essas novas lentes para compreender este cidadão (com mais de 60), seus perfis e demandas. O que fazemos é oferecer alguns ambientes para que tal indivíduo, em grupo, se realize: seja ao assistir um filme, seja numa discussão sobre família ou numa atividade física. Já existem muitas evidências científicas de que o exercício regular de atividades físicas, cognitivas e culturais eleva a qualidade de vida e o bom longeviver. Todavia, o Brasil não têm experiências em escala a ponto de implementar tais atividades (por meio de políticas públicas ou não) e que a sociedade esteja disposta a arcar, economicamente. E é aí que atuamos: buscamos contribuir para o desenvolvimento deste modelo.
Sobre a situação da pessoa acima de 60 anos no país, o que diz a ViaGutenberg?
É fato que a população brasileira acima de 60 anos está em crescente aumento demográfico, dado à melhoria na qualidade de vida que os indivíduos vêm tendo desde as últimas décadas; também, referente à atenção dada pelo Estado quanto aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo sênior (vide a homologação do estatuto do idoso). A velocidade com que a sociedade está se organizando para atender e conviver com esta população mais madura, não parece ocorrer com a mesma agilidade com o avanço percentual da população na pirâmide etária brasileira. Na prática, isso significou uma grande frustração. A aposentadoria tão esperada a partir dos 60, não chegará para as próximas gerações, seja porque a previdência continuamente aumentará a faixa etária de aposentadoria, seja porque as pessoas não intencionarão passar para esta posição depreciativa. Temos que mudar o jeito como enxergamos os +60, para mudarmos o jeito como transitamos entre trabalho e aposentadoria e mesmo para mudarmos o jeito como crescemos e vivemos. Com isso, temos desafios reais quanto o repensar da proposta de nação que objetivamos para o Brasil ante o maior ativo imensurável nacional: os próprios brasileiros.
E sobre o mercado do envelhecimento hoje no Brasil?
Tecnicamente, um mercado é formado por demanda e oferta articulada. Demandantes se reconhecem como tal e vice versa. No momento, não existe mercado do envelhecimento no Brasil. Assim como não existe oferta adequada de serviços públicos. O Professor Alexandre Kalache diz que, assim como há menos de um século o termo adolescente era desconhecido e as pessoas entendiam que existia uma transição direta da infância para o mundo adulto, em alguns anos teremos a percepção esclarecida sobre esta(s) “nova(s)” etapas de vida. Para nós, isso faz total sentido. E a própria falta deste entendimento e percepção é a causa de não termos clareza sobre as diferentes demandas existentes e as diferentes ofertas possíveis. Claro que é questão de tempo, e que em breve tais propostas e concepções irão se organizar. As poucas organizações que já “acordaram” para o público “idoso” (entre aspas, pois consideramos que esta denominação vem carregada de inúmeras caracterizações que não mais suportam o trato ao público +60) estão, cada vez mais, buscando entender e desenvolver produtos e serviços que atendam as reais necessidades de seus consumidores.