Não convide Drauzio Varella para um movimento pró-eutanásia. O médico e escritor, que já emprestou o seu prestígio para defender as pesquisas com células-tronco e atacar a indústria do cigarro, não acredita que uma lei consiga dar conta de uma questão tão complexa.
Para ele, eutanásia é um nome muito geral, muito difícil de caracterizar os casos. “Os princípios da lei podem te levar ao engano. Tem casos que podem não cumprir todos os princípios”, disse, na última terça-feira, na primeira das dez sabatinas que a Folha promove neste ano. Quando ocorre morte cerebral, o médico diz não ter dúvidas: desligam-se os aparelhos e doa-se o coração.
Entrevistado por colunistas da Folha (Gilberto Dimenstein, Moacyr Scliar, Fernando Bonassi e Marcelo Leite), Drauzio falou sobre a mídia, a função do médico e a Amazônia. “Não temos nada a aprender com a medicina dos índios. Eles ficam tomando chás porque não têm remédio, não têm antibiótico.”
Leia a seguir trechos da sabatina.
O médico e a mídia
“Essa forma de comunicação que eu arranjei foi uma armadilha para mim mesmo. Comecei fazendo boletins no rádio. Foi depois de uma conferência em Estocolmo, em 1985, quando a Aids estava começando. Um médico publicou um artigo e citava um trecho da “Divina Comédia” de Dante: “O pior dos infernos está reservado a aqueles que nos piores momentos se omitem”. Comecei a fazer spots na Jovem Pan e a partir daí fui empurrado [para outros meios], com muito medo. Há 20 anos, médico não falava em meio de comunicação. Quem falava tinha fama de picareta. Mas é uma coisa que tem de ser feita. Você sabe coisas que muitas pessoas não sabem e isso precisa ser explicado. Hoje não tenho coragem de parar esse trabalho. É um trabalho pesado, eu tenho que estudar, conversar com especialistas, me preparar. Isso toma quase todo o tempo que eu tenho. Com meus 60 anos, eu poderia ir viver num sítio. Mas não tenho coragem de desprezar essa oportunidade. Quem vai fazer esse trabalho? Nunca houve um médico que tivesse a oportunidade de falar com 50 milhões de pessoas. Nunca fui tão bem informado como agora. Eu divido meu tempo: uso um dia da semana para fazer a gravação de TV, uso meus fins de semana. Acho que nunca fui tão bom médico quanto agora”.
Função da medicina
“A linguagem técnica te defende. Você não pode ser acusado de estar falando uma coisa errada, seu colega irá entender e te defender. Tem sempre um colega olhando o que você está fazendo. Quando um médico está falando na frente da TV, ele não está preocupado em orientar as pessoas, mas em não decepcionar os colegas de trabalho. Hoje tenho o prazer em pegar as coisas mais complicadas e transformar em coisas comuns para as pessoas entenderem. Esse é o desafio que temos de enfrentar. O médico antigamente escrevia um garrancho que só outro medico entendia, ficava numa cadeira mais alta e o doente não tinha como discutir, pois não entendia. O médico existe para apontar soluções técnicas. Com três minutos de conversa você pode acalmar uma pessoa apavorada. A função do médico é explicar e achar a melhor solução para aquela pessoa. Os americanos entregam um protocolo, informando que o paciente tem três soluções: uma custa tanto, a outra é mais barata e a terceira é mais agressiva. E deixam que o paciente escolha. Isso que os americanos estão fazendo é o fim da medicina. Aqui está pegando essa moda. Deixar para o paciente decidir é o oposto do que eu acho da medicina. Seria como um engenheiro oferecer três projetos de pontes e a população fosse lá escolher”.
Carandiru
“Ver os presos cuidar de doentes morrendo de Aids na cadeia, caquéticos, fazendo as necessidades ali na cama, foi a coisa mais instigante [que vi no Carandiru]. O que leva esses homens a agir dessa maneira? Eles não estão ganhando nada, não há redução de pena. Nossa tendência é equalizar o inimigo. Mas esse lado humano dos presos foi uma coisa muito forte, fiquei muito curioso. Eu também tinha essa idéia do ladrão sem-vergonha. Aí você conversa com um menino de 22 anos e ele tem muito mais experiência do que você. Quando escrevo, o que me interessa é o que tem de original naquela pessoa, o que aquela pessoa tem de especial que o diferencia dos demais na Terra. É o que eu procuro quando escrevo. No Carandiru, tive o privilégio de estar com pessoas com experiências de vida inacreditáveis. Acho que foi em Cannes que um repórter inglês me chamou de “muito generoso”. Eu não sou uma pessoa tão boa assim. Fui lá para entender uma curiosidade pessoal, por gostar de filme de cadeia. E, por mais que você freqüente, a tensão permanece todo dia. Isso dá uma adrenalina muito interessante. Fiquei encantado, com uma felicidade. Aprendi com um rapaz franzino, mas que comandava uma região inteira de jogos, que o que o homem mais gosta é de falar de seus problemas”.
Amazônia
“Você pode cortar toda a madeira da Amazônia, todo o mogno, que não tem problema. Mas basta aparecer com uma tesourinha e cortar um galhinho de árvore que dá uma complicação. Biopirataria é patentear o urucum, o cupuaçu, como os japoneses fizeram. Pesquisa só dá prejuízo. Quando começamos as pesquisas, achamos que deveríamos ver o que as comunidades tradicionais usavam. Eu desanimei no ato: 90% das coisas que os índios usam é para o fígado. Tudo é bom para o fígado e na medicina nunca descobriram nada [para o fígado]. Nós não temos nada a aprender com a medicina dos índios. Eles ficam tomando chás porque não têm remédio, não têm antibiótico. Nós pesquisamos cem extratos [vegetais] que têm atividades. Você pega e separa seus componentes para ver qual é o responsável pela melhoria, qual mata as células tumorais. É um trabalho muito cauteloso, muito demorado. É inviável monetariamente. E o que o governo faz? Está espantando os interessados em fazer estudos. A única chance de preservação é através do estudo. Estrangeiros a quem devemos muito, que passaram a vida na Amazônia catalogando plantas, são tratados como biopiratas. É preciso criar regras. A demora para a confecção de um remédio é de 12 a 15 anos”.
O futuro
“As células-tronco vão representar o que os antibióticos representaram no século passado. É a possibilidade de regenerar o tecido humano. No caso do Brasil, eu participei [do debate] indo ao Senado explicar qual a importância desse tipo de pesquisa. Havia uma forte pressão de pessoas em cadeiras de rodas. Não tem sentido as pessoas, em nome de crença religiosa, proibir esse tipo de pesquisa. Se a vida começa com o espermatozóide, então a masturbação é um genocídio. Eu acho que o que você tem de explorar na mídia é o oposto [das células-tronco]: são as pesquisas do dia-a-dia, o que você come, de que jeito você usa o corpo, mas isso não dá manchete. Acho muito exagerada [a previsão de que o homem pode viver até 120 anos no século 21]. Nós dobramos a idade do homem no século 20, a expectativa de vida no início do século era de 45 anos, basicamente às custas de saneamento, antibiótico e vacinas. Nós não teremos mais doenças infecciosas, apesar de que tem uns idiotas que não tomam vacina, mas não vamos conseguir dobrar a expectativa de vida. Em alguns países, a expectativa de vida vai até cair por causa da obesidade. A Organização Mundial da Saúde tem projeções que mostram que a epidemia de obesidade provocará mais mortes neste século do que o cigarro no século 20”.
Eutanásia
“Eutanásia é um nome muito geral, mas é muito difícil caracterizar os casos. Sobre essa moça nos EUA [Terri Schiavo], eu não tenho nenhum tipo de dúvida. Nesse caso, tira o coração e faz um transplante, pois o cérebro está morto, mas o coração funciona. Existe uma hierarquia: você está autorizado quando há morte cerebral porque o que caracteriza a vida no ser humano é o cérebro. Mas há casos de dor em que você dá tanto analgésico que a pessoa já não sente nada. Quando ligo o soro, o doente dorme. Você reduz o analgésico, ele começa a gemer. Aumenta e ele dorme de novo. Isso é eutanásia? E as 14 mil pessoas que esperam uma cirurgia no Rio. É eutanásia isso? É eutanásia passiva? Quando vejo um doente descerebrado, com tubo ligado, e o médico desliga o aparelho, eu não tenho nenhum problema. Na moça dos EUA, eu não faria isso por uma razão: os pais não querem. É a mãe que interessa. Em raríssimas vezes vi uma mãe dizer: “Meu filho merece morrer”. Acho que não [é possível criar uma lei sobre a eutanásia]. Quando você estabelece uma lei com certos princípios, tem de observar se eles estão sendo cumpridos. Os princípios da lei podem te levar ao engano. Tem casos que podem não cumprir todos os princípios. Desconfio desses países que estabelecem leis para eutanásia”.
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Fonte: Folha de S.Paulo , 27/03/2005