A fronteira entre acumular pensando no futuro e o vício de guardar coisas inúteis parece tênue e é preciso saber reconhecê-la. Desde pequenos, quando ganhamos nossa primeira caixinha ou gaveta para guardar brinquedos, até adultos, donos de nossas casas, temos de exercer constantemente o poder de decisão -saber o que guardar e o que jogar fora, sem chorar depois. Viver rodeado do passado pode ser confortável, mas afundar nele é pesado e acaba tendo como resultado a sensação de que o nosso futuro -os sete palmos de terra- já está aqui. Com espaço, é fácil manter ordem e encontrar o que procuramos. Cada coisa tem um tempo de vida -e há também a hora certa de se desfazer delas.
Anna Veronica Mautner *
Vivendo em tempos de obsolescência precoce, como no caso dos aparelhos eletroeletrônicos, desfazer-se é imposição, com tempo previsto pelos fabricantes. Rádio velho poucos guardam. De roupas, louças e engenhocas ninguém sabe quando é hora de se desfazer. Nem estou falando ainda sobre o mar de papéis a nos inundar o cotidiano, cujo prazo de guarda é estabelecido pelo governo e por estatais. A Receita Federal exige que todo cidadão guarde por uns tantos anos recibos de tudo que descontou. Eis um campo em que não se confia em computador. Para recibos ou procurações, é o papel que vale. E, quando o cidadão morre, cabe aos herdeiros, no que costuma ser um dia dos piores, remexer as intimidades oficiais do falecido. Aí, os sobreviventes decidem o que fica com quem e o que vai.
Nós, vivos, donos únicos das nossas coisas, resolvemos a cada dia o que vai e o que fica. “Será que um dia ainda vou receber para jantar ou posso passar adiante as minhas travessas?” Esse tipo de pergunta faz parte do amadurecimento, não só do envelhecimento. Quando é hora de jogar fora velhas cartas de amor? É sempre triste imaginar que ninguém vai curtir as fotografias que tanto significam para mim.
Viraram notícia os casos extremos de inutilidades acumuladas por certas pessoas, sempre gente solitária. O mau cheiro, os insetos e as queixas dos vizinhos acabam decidindo pelo indeciso acumulador. Li até um caso de uma pessoa que dormia na garagem, dentro do próprio carro (que também não era usado), por falta de outro espaço livre.
Não é só a morte a ameaça temida por aquele que acumula. Criança odeia quando jogam fora seus brinquedos, mesmo os velhos e quebrados. Freqüentemente o espaço privativo dos jovens vira depósito de camisetas, tênis, meias, CDs e engenhocas que eles pretendem reciclar um dia -que nunca chega. Numa kitchenette de jovem, encontramos dois copos e dois pratos, mas no corredor estão penduradas dez mochilas pelo menos.
O apego nem sempre resulta de escassez, traumas ou carência. É muito mais uma forma de protelar a chegada do dia de amanhã e de continuar fazendo de conta que hoje é ainda ontem. A síndrome de “juntar coisas” com a falta de espaço gera um estresse que nos torna mais indecisos ainda e menos seguros para jogar fora. O que importa para usar amanhã, esse dia tão desconhecido? Para não jogar nada fora, basta ter medo do amanhã.
[…] Cada coisa tem um tempo de vida, e há também a hora certa de se desfazer delas
*Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de “Cotidiano nas Entrelinhas” (ed. Ágora)
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