Do Memento Mori ao Carpe Diem: apropriação da identidade da envelhescência

Do Memento Mori ao Carpe Diem: apropriação da identidade da envelhescência

“Porque é da morte que sempre temos que falar. As pessoas morrem, mas tratamos a morte como se fosse um episódio a mais na vida, nós a banalizamos, e não deveria ser assim. […] O que acontece é que pretender falar da vida evitando a morte, como se ela não existisse, é uma mentira. O que eu pretendo é afrontar-me com a morte, não com a minha morte, não com o final da minha vida, o desastre que vai ser, a dor que sentirão quando me forem ver: coitadinho, morreu. Não é isso. […] Tentamos apagar a morte. As pessoas, já não mais morrem, simplesmente desaparecem”. (Saramago, 2008)

 

Do ideário cristalizado de sabedoria e experiência, a imagem do idoso passa por transformações que refletem visões contrastantes – ora é visto de forma estigmatizada, atrelado às concepções de impotência e limitações, ora é concebido como ser ativo, capaz de diversas potencialidades.

“Envelhescência” (2015) é o título de um documentário que conta a história de seis pessoas que vivem a vida de uma maneira plena. Ele traz uma reflexão acerca da velhice e uma nova perspectiva sobre o envelhecimento. Uma quebra de paradigmas, retratando histórias que saem dos padrões estipulados pelo senso comum do que seria essa etapa da vida. Para não adiantar muito do filme, me limito a contar que esses seis indivíduos não são excepcionais apenas em suas atividades, mas principalmente, em seu modo de seguir adiante sem se importar com rótulos e restrições alheias. Não há o certo ou o errado, quem decide a melhor forma de viver é a própria pessoa. Além disso, a consciência da proximidade e relação com a finitude também se apresenta como um tópico de discussão, vindo à tona Cronos (tempo cronológico) e Kairós (tempo vivido).

O documentário serve como ponto de partida para pensarmos sobre um modo de vida tão diferente do esperado para a faixa etária. Nesse sentido, é importante ressaltar que a velhice “é um estado difuso, vivido, sentido e percepcionado de forma diversa, desde o seu enaltecimento até ao seu repúdio”, como cita Ferreira (2013) em seu estudo, “O efeito das percepções da velhice e da institucionalização no envelhecimento ativo: um estudo de caso”. A sociedade tende a desvalorizar o idoso, retirando-o de atividades cotidianas ou de lazer, caracterizando-o como desabilitado ou incapacitado.

 

No estudo, como conceito sociohistórico, de Ribeiro da Silva (2011), “Representações sociais da velhice”, depreende-se que tal caracterização resulta tradicionalmente de visões consideradas parciais sobre o fenômeno, pois são feitas a partir de generalizações em um número reduzido de fontes históricas que, por muitas vezes, confundem o tratamento reservado pela sociedade a indivíduos específicos.

Há certa dificuldade para caracterizar a velhice, uma vez que inclui uma faixa etária ampla e de elevado número de indivíduos, o que torna complexo o processo de estudo. A sua concepção e imagem mudam de acordo com os contextos histórico e cultural e, também, de acordo com cada indivíduo.

Frequentemente, encontramos a relação juventude versus velhice. A juventude, referindo-se ao presente, e a velhice significando tudo que é passado. Em um paralelo com a literatura clássica (XVI – XVIII), a velhice remeteria ao movimento barroco, enquanto a juventude, ao arcadismo (neoclassicismo). O barroco emerge em um contexto conservador e de importante influência da igreja, ressaltando ideários de virtude, com a presença constante da morte. Sendo o memento mori, na sua interpretação literal, “lembre-se da morte”, que posteriormente encontra oposição no memento vivere  árcade. O arcadismo, também denominado neoclassicismo, remete ao novo, “neo”; conhecido por uma de suas máximas, o carpe diem. O arcadismo ocorre em um período de profundas mudanças no contexto mundial – segunda metade do século XVIII: ascensão do Iluminismo, que pressupunha o racionalismo, o progresso e as ciências.

Retomando a reflexão a respeito do carpe diem, “aproveite o dia” – a própria vida, segundo muitas interpretações – é constante a atribuição exclusiva da expressão aos árcades, que também fora resgatado pelos românticos. Porém, muitos esquecem que, assim como no arcadismo, a expressão encontra sentido no período barroco. Não obstante, há uma diferente colocação. No barroco, o carpe diem possui, igualmente, o caráter de se aproveitar a vida, contudo, sempre tendo em mente sua finitude; uma marca evidente da Idade Média, onde a morte era algo com que se convivia. Ao passo que, para os árcades, o carpe diem continha um cunho oposto, de se aproveitar a vida independente da morte.

A partir das características citadas, torna-se mais evidente o paralelo e suposta oposição entre ambos os movimentos, que seriam as personificações de velhice e juventude. O barroco, com seu caráter mais conservador, e a presença marcante da morte. E o arcadismo, que exalta a vida, sem se preocupar com a morte. A priori, ambos parecem tão contrários em suas máximas, assim como a velhice e a juventude. Entretanto, assim como o carpe diem apresenta dois modos de interpretação, duas facetas da expressão, a juventude e a velhice igualmente se configuram como duas faces da mesma moeda, partes do ciclo de vida.

A juventude e a velhice dificilmente são colocadas de maneira a se equipararem, vistas como essenciais e complementares. A expansão da análise, elaborada recorrentemente, revela-se um desafio que poderia nos auxiliar a entender a perspectiva do idoso e do jovem sobre o envelhecer e o futuro.

Talvez, a razão de tanto estranhamento nessa aproximação, ou mesmo, na própria reflexão, se liga à um ponto comum: a morte. Por mais resistência que se tenha diante do “fato”, a morte está presente em todo tempo da vida. Tudo aquilo que tem vida, uma hora encontra seu final. Nesse sentido, a velhice e a juventude não são diferentes, entretanto, as pessoas parecem se esquecer disso, e até tendem a ignorá-la.

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Sobre esta questão, Saramago (2008) citado por Correa (2011) em “Ensaios sobre a relação do homem com a morte”, diz: “Porque é da morte que sempre temos que falar. As pessoas morrem, mas tratamos a morte como se fosse um episódio a mais na vida, nós a banalizamos, e não deveria ser assim. […] O que acontece é que pretender falar da vida evitando a morte, como se ela não existisse, é uma mentira. O que eu pretendo é afrontar-me com a morte, não com a minha morte, não com o final da minha vida, o desastre que vai ser, a dor que sentirão quando me forem ver: coitadinho, morreu. Não é isso. Trata-se do fato em si da morte, de que a gente tem que morrer e o quanto isso ilumina ou, pelo contrário, escurece a própria vida que se leva. […] não há nada de mórbido no que estou a dizer, nada, não há nenhuma morbidez. Não gosto de falar da morte, mas ela está aí. O que eu quero é afrontar-me com ela, e que aquilo que eu escreva tenha essa referência, que não é expressão definitiva do pessimismo, não. […] O que pretendo, sim, é evitar que se esqueça que ela existe, que é o que se costuma fazer. Tentamos apagar a morte. As pessoas, já não mais morrem, simplesmente desaparecem”.

Como afirma Correa (2011), ao longo do tempo há uma constante oscilação da proximidade e distanciamento da relação do homem com a morte. Na antiguidade, havia uma maior proximidade, sendo refletida em práticas como cuidado do corpo morto, no seu velamento em ambiente doméstico, entre outras. Em contraposição, na modernidade tem-se procurado recursos e formas de combater a morte, mantê-la longe. Exemplos a serem mencionados: o avanço da medicina, o desenvolvimento da ciência e dos hospitais, a criação de necrotérios e funerárias e até o afastamento dos cemitérios do espaço urbano.

Nesse âmbito, a concepção de envelhecer se torna questionável. O recente ideário do “rejuvenescer”, que se concebe, levanta a pergunta de que rumo a velhice estaria tomando. Pois, se o envelhecer é retornar a juventude, numa idolatria perpétua pelo jovem/novo, onde se colocaria a velhice?

A instituição do “rejuvenescer” expressa de modo claro o almejado distanciamento com a morte. No âmbito que se considera a juventude uma das expressões máximas da vida, em que o jovem é personificação de vitalidade e possibilidades, e onde supostamente estaria mais distante da morte. Como sua oposição estaria a velhice, pretensamente mais consciente e próxima de sua finitude. O estereótipo antes tão difundido do mais velho como uma figura sábia, agora é substituído pelo demente. Aquilo que na antiguidade tanto se valorizava – a passagem do tempo e a resistência a ele, mesmo mediante da morte eminente –, hoje, configura-se como um temor, algo que deve ser evitado. O advento das tecnologias contribuiu em demasia com tal mentalidade. Seja pela forma que estimula a alienação em relação à finitude alheia, seja pela maneira que instala a ideia que “novo” é sinônimo de “bom”. Além disso, também exalta uma praticidade em serem descartados e renovados.

A partir das divergências de visões é possível refletir sobre como se dá a interação direta desses dois universos. Será que estão abertos para receber um ao outro? Será que eles se chocam? Ou que estas relações se dão de forma harmoniosa? Segundo Ruschel e Castro (1998), as interações entre jovens e idosos, avós e netos, se concebem de diferentes formas, pois as relações intergeracionais são desiguais pelos diferentes papéis sociais que assumem.

A experiência cultural de geração para geração não aconteceria de forma passiva, pois assume diferentes facetas, provocadas pelo distanciamento entre gerações. Os autores trazem a definição de envelhecer sobre a perspectiva da longevidade, sendo “uma diminuição do potencial ou dos recursos”, e que uma pessoa ao ingressar na faixa da terceira idade não poderia ser vista como impedimento de participação social. Todavia, “o idoso deste fim de milênio […] luta contra as representações limitantes e suas repercussões sobre a autoimagem e autoestima”. A tendência de “enjuvelhecer” a velhice poderia ser supostamente um reflexo de tal pensamento, onde essa transição existencial e suas implicações aos poucos estariam sendo substituídas ou deixadas de lado.

No entanto, eis que a questão da “envelhescência” recupera parte de tal identidade e abre portas para essa nova caracterização e experiência intrínseca do envelhecer. A discussão do Cronos e Kairós, que traz Pessini (2006) em seu artigo, “Finitude: viver no pesadelo do cronos ou escolher a benção do kairós?”, apresenta as duas formas de se viver o tempo na vida.

Cronos como o tempo cronológico, é a marca implacável da finitude e temporalidade, inevitável no processo de envelhecimento do corpo, e Kairós, o tempo percebido subjetivamente de forma diferente para cada pessoa. Assim, vemos que Cronos não precisa ser limitante do Kairós, do mesmo modo que a morte não precisa ser limitante da vida, o memento mori não precisa ser limitante do carpe diem.

O documentário exprime a vida vivida onde, independentemente da idade e das restrições físicas, os limites são dados pelos próprios sujeitos. Como se vive, aquilo que te faz feliz, o que plenifica a vida e lhe dá sentido não têm idade. Como encerra Pessini (2006), “a chave para se morrer bem está no bem viver!”.

Referências

CORREA, M.R. (2011). Ensaios sobre a relação do homem com a morte. Tese de doutorado em Psicologia. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras.

FERREIRA, C.S.S. (2013). O efeito das percepções da velhice e da institucionalização no envelhecimento ativo: um estudo de caso. Dissertação de Mestrado. Universidade do Porto.

RIBEIRO DA SILVA, A.M. (2011). Representações sociais da velhice. Tese de doutorado em Psicologia. Universidade do Porto.

RUSCHEL, A.E.; CASTRO, O.P. (1998). O vínculo intergeracional: o velho, o jovem e o poder. Psicologia: reflexão e crítica, v. 11, n. 3, p. 523-539.

PESSINI, L. (2006). Finitude: Viver no pesadelo do cronos ou escolher a benção do Kairós. In: Velhice: reflexões contemporâneas. São Paulo: PUC-SP.

Website do Documentário: www.envelhescencia.com.br/

(*)Por Anne Aguemi – aluna do curso de graduação de Psicologia, da Pontifícia Universidade Católica – PUCSP, 5º semestre, e Ruth Gelehrter da Costa Lopes – supervisora atendimento psicoterapêutico à terceira fase da vida. Profa. Dra. do Programa de Estudos Pós Graduados em Gerontologia e do curso de Psicologia, fACHS. E-mail: [email protected]

Ruth G. da Costa Lopes

Psicóloga, mestrado em Psicologia Social pela PUC-SP e doutorado em Saúde Pública pela USP. Atualmente é professora Associada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo na Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Gerontologia e Psicogerontologia, atuando principalmente nos seguintes temas: processo de envelhecimento, psicoterapia em grupo para idosos, velhice e família. E-mail: [email protected]

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Ruth G. da Costa Lopes

Psicóloga, mestrado em Psicologia Social pela PUC-SP e doutorado em Saúde Pública pela USP. Atualmente é professora Associada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo na Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Gerontologia e Psicogerontologia, atuando principalmente nos seguintes temas: processo de envelhecimento, psicoterapia em grupo para idosos, velhice e família. E-mail: [email protected]

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