Do lado do abismo das pedras

Acho que as pedras também falaram de perdas, família, dor, sofrimento, amor e solidão. Havia o cheiro e marcas de todo um país desigual.


Descobri que havia um “lado” inverso, negativo da minha cidade quando fui enxotado, mesmo na calçada, por um motociclista. Para evitar ser atropelado, fui obrigado a desviar do diabólico motoqueiro e parar bem desequilibrado à beira de um buraco, também na calçada que transitava. Tudo para escapar ao constrangimento de um atropelamento, equipamento fotográfico e ossos quebrados, provavelmente. Não era um “buraco negro”, com a enorme probabilidade de desaparecer e tudo que viesse a cair dentro dele, mas um perigoso buraco, conclui.

Já havia uma mulher, jovem e bonita, com quem agora eu passava a dividir espaço e segurança. Ela, acocorada, quase aos meus pés, mexia e chamava pelos nomes, as pedras retiradas que faziam o buraco da calçada. Pareciam antigas e ótimas companheiras. Dialogava com elas como personagens fundamentais na sua relação com a vida. As pedras de toda a sua existência estavam ali, e a conversa, pra mim, fluía compreensível com cada uma delas, assim:

– Fred, má, sou eu, a Martinica! Desde ontem estou aqui na esquina e tu nem aparece! O que você está fazendo aí em cima? Sai logo!

Ela corria o risco físico de ser pisoteada. E, maior ainda, o social, de ficar sempre invisível.

E o monólogo continuava: “Faz três noites que eu não durmo, estou toda molhada. Umas pessoas que vivem lá em baixo passaram a noite toda jogando água na minha cabeça. Não sei como é que se mora do lado de fora da terra! Fico o tempo todo correndo sem parar e não te encontro mais. A claridade aqui é muito grande, estou cansada e queria saber se você poderia dividir teu papelão comigo. Estou com muito frio e, já, já, muito calor.”

Havia o cheiro e marcas de todo um país desigual, grudado no corpo dela, e exalavam todos ao mesmo tempo. E as marcas poderiam ser nomeadas, cada uma delas. Magérrima, era impossível não sentir e identificar a solidão que passou a morar no lugar onde havia uma alma. Ela cheira a álcool, bebida barata, a queimado, fumaça e desprezo. Na boca, duas bolhas de queimaduras: uma maior, no lábio superior, e a menor, do lábio inferior, já estava mais seca. Por não enxergar mais qualquer possibilidade de sobrevivência, havia muito pavor nos olhos da Martinica.

A cidade da Martinica está de cabeça para baixo – de ponta cabeça. É uma cidade equivocada, relapsa, desfocada. Um lugar onde o Estado é mínimo. Talvez um pouco quente, ou demais quente, horas gelada, molhada, afinal, ela foi construída dentro da terra, debaixo do chão. Ou será o outro lado espelhado, negativo de outra cidade onde o Estado é máximo? Será o inverso de tudo que há lá encima? Faz pouco tempo que ela anda na cidade espelhada, menos ainda que vaga sobre as calçadas, ruas, avenidas e praças. Ela lembra que antes, bem antes de ficar uma cidade ao contrário, havia teatros, salas de cinemas. Outro dia, frequentava uma escola.

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A cada resposta dada pelas pedras, Martinica sorria e, quando cochichavam segredos, ela colocava o ouvido dentro do buraco e dava longas risadas. Somente quem convive com as pedras pode vivenciar seus delírios. Acho que as pedras também falaram de perdas, família, dor, sofrimento, amor e solidão. Foi neste momento que desceram umas lágrimas marcando a “maquilagem” feita de fuligem no rosto da Martinica.

Quando as lágrimas surgem motivadas pela dor e descem às nossas faces, espantam os fantasmas e demônios que ali habitavam há dias, e logo aparece ser humano, mesmo com dores. Sem eles, os demônios, via-se uma pele mais viçosa e brilhante. Ela olhou para mim e com as mãos, vergonha, ódio e lágrimas lavou o rosto, borrou toda a fuligem e fez surgir uma menina com menos de 20 anos. Ainda havia uma alma. Ela não fugiu às pedradas que levava, pois ainda há esperanças. Martinica sumiu rápida entre os carros.

Fotos: arquivo pessoal


Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected]

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