A alegria prevalece em um ambiente no qual imaginamos só haver lugar para dor, sofrimento e tristeza, mas a música ecoa nos meus ouvidos: Dias melhores pra sempre.
Angela Balbão (*)
No dia 12 de maio de 2020, final da tarde fria e nublada, toca meu celular, é do Samaritano, coloco no viva-voz para que minha filha possa ouvir as notícias sobre meu marido internado com a Covid-19. O coração dispara ao ouvir que ele será entubado novamente, bactérias oportunistas, pulmões muito comprometidos, estado grave, muito grave. Sinto o abraço forte da minha filha, apoio minha cabeça no peito dela e me pergunto como foi que isso tudo começou. Respiro fundo e me deixo envolver nesse abraço tão necessário e tão desaconselhado em tempos de pandemia.
Foi em 2014 quando, sem aviso prévio, como costumam ser esses eventos infelizes, um AVC isquêmico devastador afetou a vida de meu marido, aos 72 anos, e tirou dele toda a autonomia e muito de sua capacidade cognitiva, colocando-nos diante de escolhas sequer imaginadas. E, principalmente, virando nossas vidas de cabeça para baixo.
O AVC deixou sequelas importantes como a hemiplegia dos membros do lado direito e afasia de Wernicke, que o deixou incapacitado de compreender, associar e interpretar informações da linguagem escrita e falada, apesar de escutar e reconhecer algumas palavras. A memória visual e musical se mantiveram intactas e tentamos reabilitá-lo por aí, considerando que desde a mocidade teve como hobby a bateria e o piano.
Durante quatro anos cuidei dele em casa contando com a ajuda de profissionais durante 24 horas, fonoterapeutas, fisioterapeutas, musicoterapeutas, cuidadores e grandes doses de amor e paciência. Com o passar do tempo ficou evidente para minha família que a fisioterapeuta não conseguia fazê-lo participar dos exercícios propostos e a fonoterapeuta também não obtinha progresso. Seu maior estímulo sempre foi a música, esta tem o poder de deixá-lo tranquilo e feliz, o encontro com filhos, netos e amigos também é motivo de alegria e nosso cachorro, claro.
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Desde o primeiro dia em que o levei para casa contando com a ajuda de cuidadores, nossa maior preocupação era o que fazer se um deles não aparecesse para o trabalho. Poucas vezes isso aconteceu, felizmente, na maior parte do tempo contei com funcionários comprometidos, mas os dias e noites em que enfrentei essa situação foram bem complicados.
Uma filha voltou para morar em casa e me ajudar nos horários em que não estivesse em seu trabalho, garantindo assim uma companhia constante. Entretanto, com o passar do tempo, era visível o meu desgaste físico e emocional pelas noites mal dormidas, pelo trabalho com a manutenção da casa, pelo custo financeiro do esquema montado e pela falta de privacidade.
Surgiu a alternativa de institucionalizá-lo e ela foi se impondo, exigindo ser discutida no seio da família. O afastamento da pessoa querida, a saudade, o sentimento de culpa, o temor que significasse abandono e muitas outras indagações surgiam. Não há decisão sensata quando não se conhece o chão em que se pisa. Eu não conhecia nenhuma ILPI. Aliás, nem sabia o que era ILPI (Instituição de Longa Permanência para Idosos). Como avaliar? Demorou bastante para que eu me livrasse de preconceitos e encarasse a solução da institucionalização como a melhor alternativa para meu marido, para mim e para toda a família.
Há dois anos, após visitar aproximadamente 20 casas de repouso privadas (ILPIs), escolhemos uma instituição pertinho da minha casa para que eu pudesse visitá-lo todos os dias. E assim foi feito. Só não o visito quando viajo ou nas raras ocasiões em que fico doente.
Na instituição ele fez amigos que respeitam e aceitam suas limitações, recebe carinho e cuidados dos funcionários e participa de diversas atividades diárias que incluem apresentações musicais e inúmeras festas durante todo o ano. Nos fins de semana, quando não o pegamos para almoçar com a família, vamos lá passar algum tempo com ele. Assim seguia a vida até surgir a Convid-19.
Dia 13 de março eu estava com ele no residencial quando me comunicaram que seria minha última visita presencial até que a pandemia cedesse. O residencial fechou as portas para familiares e amigos, implantou protocolos rígidos de segurança entre os funcionários, providenciou materiais e insumos para proteção de todos e, para minimizar ainda mais os riscos, colocou um carro para levar e buscar os cuidadores que não pudessem dormir na própria instituição. Único jeito de dormirmos em paz…
Mas o vírus, traiçoeiro, entrou na instituição, e uma vez lá dentro, disseminou-se tal qual rastilho de pólvora. A primeira infecção percebida foi de uma cuidadora, em seguida a de um residente de 94 anos e o terceiro foi meu marido, de 77 anos. Quase todos os idosos se infectaram. Meu marido foi internado no dia 20 de abril e foi direto para a UTI, lutando para sobreviver. O tempo passou e um a um dos infectados foram tendo alta até que só restaram internados ele e uma senhora de 80 anos e o residencial foi se transformando em uma grande enfermaria de convalescentes que recebem todo o cuidado necessário para a recuperação total.
A equipe administrativa, enfermeiras e cuidadores, firmes na linha de frente, recebem com festa e muita alegria cada residente que retorna recuperado. Nas fotos que recebo vejo o sorriso desses velhinhos, que já são parte da minha família, debilitados pela doença, mas felizes por voltar ao lugar que entendem como casa.
Ansiosa, aguardo o retorno do meu Tom, sei que ele tem ainda muitas batalhas pela frente e me assusta pensar na possibilidade desse vírus ter provocado mais danos ao seu cérebro e à sua saúde.
Meu marido traz em seu histórico, além do AVC, uma craniectomia, duas cranioplastias, uma endocardite, duas sépsis (uma bacteriana e outra fúngica) e algumas pneumonias. Venceu todos esses desafios. Dessa vez a luta é desigual, eu sei, entre um idoso fragilizado contra um vírus cruel e desconhecido, com grande potencial destruidor e alta capacidade de se replicar, para o qual ainda não existem remédios nem vacinas.
A certeza da vitória é mínima, mas temos esperança que ele encontre forças para viver e que a doença não tire dele mais do que já perdeu neurológica e fisicamente.
Assim como fizemos nas outras ocasiões em que esteve em UTI lutando pela vida, gravamos um pen drive com suas músicas preferidas, dos anos 50 e 60, e mensagens de todos, até o cachorrinho da família gravou seus latidos e, com a anuência da equipe médica, enviamos para o hospital junto com um toca CD para ele ouvir.
Contando com o apoio, competência e carinho de toda equipe que o acompanha na UTI, e com a estimulação da música e nossas mensagens de amor, passamos a torcer pela sua volta para nós e para os amigos do residencial que deram a ele mais uma razão de viver. Comprei uma roupa especial de Super-Homem para o dia D e aguardamos otimistas, pois a esperança é a última que morre, mas cada vez que o telefone tocava e do outro lado da linha estava o Hospital Samaritano meu coração ameaçava parar.
Com o passar do tempo, as notícias se tornam melhores até que, finalmente, o dia tão esperado chegou. 9 de junho, 11:00 da manhã, minha filha é convocada para acompanhar o pai na alta hospitalar. Paula abre de mansinho a porta do quarto 603 da unidade intermediária onde os pacientes da Covid-19 se recuperam. Devidamente protegida, entra no quarto, coração aos pulos, tenta conter a emoção de reencontrar o pai após 90 dias, 50 deles hospitalizado, fingindo-se de repórter da família.
No seu celular, tela dividida em quatro, eu, meus outros três filhos e netas entramos virtualmente juntos no quarto. Emocionante. Nos sentimos pertinho dele vendo seu rosto espantado, magro e pálido, mas com vida e a um passo de voltar para nós. Paula nos deixa sobre uma mesinha, vai abraçar o pai e acariciar seu rosto barbado e nos emocionamos um pouco mais com seu choro contido, suas palavras de carinho e a voz fraquinha dele a expressar a alegria de um vencedor.
Paula desliga, mas logo nos surpreende por meio do FaceTime ao mostrar Tom deixando o quarto em uma maca e usando o agasalho de Super-Homem que enviamos para a ocasião. Essa cena já seria motivo suficiente para transbordarmos de emoção, mas no corredor do sexto andar pai e filha são recepcionados pela equipe do hospital que cuidou dele, com balões coloridos nas mãos, acompanhados por um violão, sabedores que Tom adora música, cantam a todo pulmão Dias Melhores Virão, da banda mineira Jota Quest.
A alegria prevalece em um ambiente no qual imaginamos só haver lugar para dor, sofrimento e tristeza. Enxergo ali muita esperança, essa que nunca morre porque o amor existe, amor e compaixão pelo próximo, que levam as pessoas a atos de solidariedade e acolhimento, arriscando sua própria vida para fazer a diferença nesse mundo tão duro. Obrigado a todos.
A música ainda ecoa nos meus ouvidos: Dias melhores pra sempre/Vivemos esperando/Dias melhores/Dias de paz/Dias a mais/Dias que não deixaremos/Para trás.
(*) Angela Balbão – Nasci em 1951 numa cidadezinha adorável chamada Santa Rosa de Viterbo, interior de São Paulo, cursei a Escola de Comunicação e Artes da USP e me formei em Biblioteconomia e Documentação, trabalhei em editoras e em um colégio privado e estava indo tudo bem até que tive que me tornar cuidadora. Depois de institucionalizar meu marido passei a frequentar os cursos da USP 60+ até chegar ao Narrativas da Contemporaneidade (hoje Narrar é Longeviver), um reencontro com a professora Cremilda Medina, com quem tive aulas na graduação, quando jovem, e hoje, na velhice, compartilhamos momentos incríveis que me devolvem o gosto pela vida e pelo viver. E-mail: [email protected]
Fotos: Acervo da família