A despedida de Rubem Alves

Triste! Rubem Alves se despede de seus leitores em sua última crônica ao Jornal Folha de S.Paulo. Ele afirma: “Resolvi, por decisão própria, parar de escrever em Cotidiano”.

 

 

a-despedida-de-rubem-alvesLogo na primeira linha nos perguntamos a razão, os motivos que o levaram a tal decisão. Nós leitores, muitas vezes, somos românticos, julgamos que somos protagonistas desta estranha relação que mantemos com os escritores que gostamos, veneramos com ardor. Então, por que não fomos consultados por este “racional abandono”?

Assim, ele inicia sua explicação, um tanto confusa, para os fiéis leitores de sua coluna: “Devo ter perdido o juízo. Minha decisão contraria um dos dois maiores sonhos de cada escritor. Primeiro, o sonho de ser um best-seller. Encontrar algum livro seu nas prateleiras da livraria Laselva, nos aeroportos. Confesso: sou vítima dessa vaidade. Mas não aprendo a lição. Nos aeroportos, vou sempre visitar a Laselva na esperança de lá encontrar um dos meus livros. Saio sempre desapontado”.

Pensamos nos escritores como seres idealistas, que criam situações e personagens à imagem e semelhança de nós mesmos, criaturas angustiadas que esperam uma palavra, talvez até uma resposta que nos aqueça o coração. Pensar no nobre Rubem Alves como alguém que deseja ver seus livros em livrarias populares de aeroportos, como tantos best-sellers prontos para serem devorados facilmente, sem reflexões ou degustações vagorosas é, de fato, frustrante. A confessa “pitada de narcisismo” do escritor é perturbadora, até surpreendente porque soa banal, como algo de todos nós, de todos os dias. Nós leitores, realmente, idealizamos nossos ídolos, heróis das mágicas palavras!

Justificando sua decisão, Rubem Alves pede socorro ao grande, senão maior escritor. Ele diz: “Fernando Pessoa tem um poema que diz assim: “Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, tenho dó delas…” E ele se pergunta se “não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas…” Respondo: Sim. Há um cansaço. A velhice é o tempo do cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. Mas, agora, meus 78 anos estão pesando. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar.

Quanta melancolia na forma como o poema de Fernando Pessoa foi descrito. A luz que faz as estrelas luzirem é aquela que nos faz acordar todos os dias e enfrentar o “cansaço das coisas, de todas as coisas…” Fácil? Com certeza não é. Insisto que cansaço faz parte de todos os momentos e de todas as fases deste incerto viver. Ficamos mais cansados com a velhice? Nascemos já cansados de tudo; da espera, da saudade, da morte e como diz Rubem Alves, os anos pesam. Mas até as estrelas são vítimas da vaidade, por que o escritor não seria?

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Escrever, para ele, passou a ser uma obrigação, já que implica necessariamente em brilhar, assim como as estrelas.

Refletindo sobre a obrigação que pesa, Rubem Alves, convida novamente Fernando Pessoa. Parece que suas palavras não são suficientes, há que trazer um ilustre alguém para ajudá-lo na decisão: “Ah, a frescura na face de não cumprir um dever… Que refúgio o não se poder ter confiança em nós…”. Ele diz: “Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto – pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto-que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever. Mas tenho a obrigação de escrever quando minha vontade é não escrever”.

A confissão do escritor nos faz pensar no vazio da alma, aquela sensação de que não há nada mais a fazer ou a dizer ou a escrever. Letras, palavras e frases já não fazem sentido. Personagens, nada falam, são inexpressivos. Sendo assim, só resta ficar com o silêncio, tentando extrair alguma coisa das entranhas, porque da superfície é o “nada” que surge.
Continuando pela obrigação da escrita ele denuncia aquilo que nós leitores fazemos questão de ignorar. Ele diz: “O tempo dos jornais é o hoje, as presenças. Mas minha alma é movida pelas ausências: nos jornais, não há lugar para ressurreições”.

O tempo dos dias atuais é fugidio, escorre pelas mãos, quando achamos que o capturamos, ele se esvai. Nada permanece, as relações se vão, logo seremos esquecidos, não importa o nosso nível de importância. Como disse Ruy Castro em sua coluna no jornal a Folha de S.Paulo na matéria “Nomes que passam”: “Acho que a memória do nome de Steve Jobs mal sobreviverá ao fim da década […] É o destino dos inventores. Seus inventos ficam ou não. Mas eles se evaporam”. É lamentável dizer, mas Ruy Castro tem razão.

Rubem Alves traz a reflexão de Drummond sobre Cecília Meireles: “Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me sempre a impressão de que ela não estava onde nós a víamos… Por onde erraria a verdadeira Cecília, que, respondendo à indagação de um curioso, admitiu ser seu principal defeito ‘uma certa ausência do mundo'”?
Com isso o escritor desabafa: “Deve ser alguma doença que ataca preferencialmente os velhos e os poetas. A Cecília descrevia o tempo da sua avó com ‘uma ausência que se demorava’. E Rilke se perguntava: ‘Quem assim nos fascinou para que tivéssemos um olhar de despedida em tudo o que fazemos?’ O sintoma dessa doença é aquilo que a Cecília disse: uma certa ausência do mundo”.

Padecer de uma “ausência do mundo” como patologia da velhice é uma incoerência. Como já foi dito, talvez com outras palavras, nascemos com “um olhar de despedida”. A questão é que não nos damos conta disto. É ilusão pensar que a juventude faz as coisas serem permanentes e a velhice nos leva aos “adeus” constante. A cada dia um novo “adeus” e um velho “olá”.

Como se não bastasse os grandes escritores, Rubem Alves nos brinda com o inexplicável: “O místico Ângelus Silésius já havia notado que temos dois olhos, cada um deles vendo mundos diferentes: ‘Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem’. Jornais são seres do tempo. Notícias: coisas do dia, que amanhã estarão mortas.

É exatamente por isso que precisamos dos dois olhos. Pela janela de um, vemos as coisas que passam, que nos fazem vaidosos, narcisistas, com um desejo voraz de brilhar continuamente e de abandonar, quando o nosso brilho já não é mais o mesmo. Pela fresta do outro, vemos o inacessível, uma certa substância que fere e nos torna cegos, até para as coisas da alma. Um não vive sem outro, por isso é vida. Quando um se tornar independente do outro, nos separamos da matéria, da carcaça e quem sabe, encontraremos aquilo que chamamos alma.
Rubem Alves finaliza tristemente: “E é por isso vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente…”
Assim passa mais um herói, talvez não tão herói como imaginávamos.

Referências
ALVES, R. (2011). Despedida. Disponível Aqui. Acesso em 03/11/2011.

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