De que amanhã…

Nestes dias de quarentena, em meio a muitos afazeres, e tantas incertezas, a expressão indefinida do título de livro de Jacques Derrida e Elisabeth Roudinesco me fez refletir sobre o momento que vivemos – De que amanhã podemos falar? O que nos anuncia ou esconde? Pensar para quê? Dialogar, com quem? Para quê?


Esta reflexão foi inspirada por esta frase, incompleta, título do livro que traz, em forma de diálogo, o pensamento do filósofo Jacques Derrida e da historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, intelectuais contemporâneos conhecidos e respeitados. Este livro, comprado em minhas andanças por livrarias, um dos meus passeios prediletos, esperava para ser lido, entre tantos outros… Mas, nestes dias de quarentena, em meio a muitos afazeres, e tantas incertezas, a expressão indefinida do título me fez refletir sobre o momento que vivemos – De que amanhã podemos falar? O que nos anuncia ou esconde?

Não pretendo fazer uma resenha do livro, e não me acho competente para este feito, mas a partir do que li e de seu instigante título fiz algumas reflexões sobre o momento atual e este futuro que nos interroga e assusta, e convido a quem me lê a também fazer este exercício. Pensar para quê? Dialogar, com quem? Para quê?

Parece que hoje nos furtamos a debater opiniões, falar livremente o que pensamos. A intolerância, ceticismo em relação a (quase) tudo impera. Cada um com sua verdade. Foi justamente esta possibilidade de pensar no futuro neste momento de instabilidade, medos, desesperança, que me fez refletir de modo solitário – como tem sido nestes tempos nunca imaginados.

O diálogo entre os dois pensadores Derrida e Roudinesco foi inspirado em versos de Victor Hugo (1802-1885)[1] extraídos do livro de poemas Os cantos do crepúsculo (1835), do qual se destaca o trecho.

Espectro sempre mascarado que nos segue lado a lado
E que se chama amanhã
Oh! O amanhã é sempre um grande momento
De que amanhã se trata?[2]

Na obra os dois intelectuais foram convidados para refletir sobre o futuro – o amanhã – a partir de temas determinados: a herança intelectual dos anos 1970; a liberdade humana; a violência contra os animais; a noção de diferença; as transformações na família ocidental; as formas modernas do antissemitismo; sobre a pena de morte e sua abolição; a atualidade de Marx e o espírito da revolução; e um ‘elogio’ à psicanálise, campo comum aos dois autores.

Destaca-se o ano de sua publicação – 2004. Há 16 anos! Hoje já é este amanhã?

Pouco tempo, muito tempo… Mas, como medir o tempo em modo acelerado?

Em fevereiro de 2020, mesmo com o coronavírus já se espalhando por muitos países, o brasileiro, e muitos turistas, viveram 4 dias de aglomeração e muita ‘folia’ nas ruas, sem preocupações, como se não houvesse amanhã… Dois meses se passaram. Pouco tempo, se pensarmos nos dias do calendário transcorridos. Muito tempo nos parece agora, quando somos aconselhados, sabiamente, ao ‘fique em casa’. Onde há liberdade e há alegria?

No prefácio do livro citado se apresenta o sentido desta obra dialogal:

[…] este diálogo corresponde à definição clássica do gênero em filosofia e nas humanidades em geral: uma troca cuja lógica se constrói ao longo de dois discursos que se cruzam sem jamais se fundirem e se respondem sem verdadeiramente se opor. Assim, enunciam-se diferenças, pontos de convergência, descobertas de um pelo outro, surpresas interrogações; em suma, uma espécie de cumplicidade sem complacência.” (2004, p.07)

Como acredito sempre nas possibilidades de diálogo na vida cotidiana e no trabalho, este é um tema que me convida a ‘filosofar’, pensar sobre o tema e propor um diálogo com os leitores.

O diálogo pressupõe troca de ideias, partilha de reflexões sobre temas variados, mas, principalmente, respeito na escuta e nas respostas, movimento criador da necessária cumplicidade na troca. O que não quer dizer concordância. Dialogar, trocar ideias, expor posições implica, além da cumplicidade, o respeito pelas palavras, que expressam ideias e ideais. Afirma Larrossa (2015 p.15-17)[3]:

O homem é palavra […] se dá em palavra, está tecido de palavra e como palavra […] Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos ou nomeamos.”

Neste trecho destaco a expressão ‘o homem se dá em palavras’! Quando mantemos um diálogo, seja de que natureza for, mas, principalmente, no intercâmbio de ideias e histórias, nos ‘doamos’ ao outro.  Para tanto devemos ter uma ‘escuta sensível’ do outro e este de nós. O encontro e diálogo que buscamos pressupõem esta “inscrição” na constituição da nossa humanidade e, nela nossas identidades culturais, pessoais e coletivas, únicas e múltiplas – expressas nas palavras faladas e escritas, nos olhares, gestos, silêncios.

Segundo o filósofo Paul Ricouer[4], os processos de reconhecimento de si e do reconhecimento mútuo, formadores das culturas, surgem das inter-relações e reciprocidades estabelecidas entre os indivíduos e os grupos – nos atos de dar e receber.

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Observamos que este “dom” da troca – tão bem estudada pelos antropólogos, com o qual deparamos nos encontros dialógicos – na pesquisa, na docência, nos encontros informais com amigos e familiares – é pleno de sentidos ligados aos valores éticos, morais e jurídicos, princípios que regem e organizam a vida social – raiz de nossas identidades – e que são inerentes à partilha das ideias, expressas em palavras. Assim o espaço dialógico poderia levar ao ‘percurso de reconhecimento’ pela ‘doação narrativa’ de caráter formador e relacional, porque propicia a estabelecer interligações e inter-relações eu – outro.

Penso que estamos, neste momento, longe da proposta desta bela reflexão.

Tenho ouvido muito se falar da solidão que se impõe neste período de afastamento social, mas consideramos este um sentimento relativo: quantas vezes nos sentimos sós no meio de outros? Sentir-se só pode ser diferente de estar só?

Tenho pensado nos últimos tempos, não só neste momento, sobre mim mesma e minha condição de velha. Meus filhos e netos não estão sempre por perto – moram em cidade e país diferentes. Meu marido trabalha muito ainda. Há tempos trabalho parcialmente em home office e no último ano fui mais seletiva nas minhas atividades externas. No entanto, gosto muito de sair com meus amigos, ver a família, viajar, dar aulas ou palestras, encontrar com meus companheiros de trabalho. Neste ponto sinto-me privilegiada pelos afetos que se cruzam neste meu caminho. Mas, tenho pensado na solidão minha, que quase busco.

Gosto muito de ler. Tenho interesse em vários assuntos, buscar conhecimento sempre me guiou, mas também porque a leitura me faz viajar em pensamentos, reflexões, novas possibilidades para minha vida e em tudo o que posso ainda partilhar e no que quero legar. E nesses momentos o diálogo é solitário – eu comigo. Muitas vezes, consigo fazer um ‘mix’ de leituras já realizadas com novas percepções que vou elaborando. Sinto ser este um exercício enriquecedor.

Penso. Vivi um bom tempo, tive inúmeras experiências, algumas maravilhosas, outras normais às demandas do momento e, como todos, tive dissabores e perdas.  Uma vida como tantas outras.

Estou praticando o afastamento físico, fundamental neste momento, e ainda não senti tédio, do qual muitos reclamam, e na última semana também elaborei poucas perguntas a alguns amigos do grupo de amigos e amigas 60+ com respostas online. Não podemos nos encontrar presencialmente, então procurei fazer um ‘diálogo’ virtual para trocarmos experiências sobre este momento, de que amanhã falamos e o que podemos aprender para este futuro, tema da próxima reflexão que compartilharemos neste mesmo espaço.

Com que palavras vamos dizê-lo – um desafio para todas as idades e, em especial, para nós os velhos. Qual é a palavra para o amanhã, que imaginamos, nascerá das brumas das incertezas? 

O amanhã é sempre um grande momento?
De que amanhã se trata? 

Notas
[1] Victor Hugo (1802-1885) – poeta, dramaturgo e estadista francês. Autor dos romances, “Os Miseráveis”, “O Homem que Ri”, “O Corcunda de Notre-Dame”, e “Cantos do Crepúsculo”, entre outras obras célebres. Representante do Romantismo foi eleito para a Academia Francesa.
[2] Tradução extraída do livro De que amanhã…Diálogos. Tradutor André Teles. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
[3] LARROSA, J. Tremores. Escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autentica 2015.
[4] Ricouer, P. (2006). Percurso do Reconhecimento. São Paulo: Loyola.


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Vera Brandão

Pedagoga (USP); Mestre e Doutora em Ciências Sociais (PUCSP); com Pós.doc em Gerontologia Social pela PUCSP. Docente. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE-PUC/SP). Editora da Revista Longeviver (https://revistalongeviver.com.br) e Coordenadora Pedagógica do Espaço Longeviver. E-mail: [email protected]

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Pedagoga (USP); Mestre e Doutora em Ciências Sociais (PUCSP); com Pós.doc em Gerontologia Social pela PUCSP. Docente. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE-PUC/SP). Editora da Revista Longeviver (https://revistalongeviver.com.br) e Coordenadora Pedagógica do Espaço Longeviver. E-mail: [email protected]

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