O esforço para que a sociedade civil participe de forma autônoma da construção do futuro, ensaiando novas formas de política, ampliou-se nos últimos dias graças a dois fatos notáveis. Estão relacionados à luta para colocar a Saúde (e os conhecimentos necessários para assegurá-la) no terreno dos direitos sociais, retirando-a do domínio dos lucros. Em 20 de agosto (leia post abaixo), a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) protocolou oposição ao patenteamento do Truvada, um “novo” remédio contra a AIDS cujo principal efeito é, ao que tudo indica, transferir dinheiro público para bolsos privados.
Antonio Martins
Três dias depois, foram ao ar dois websites bilíngues (português-inglês) que abrem o debate sobre patentes farmacêuticas entre a sociedade. O primeiro (Acesse Aqui) trata o tema no âmbito brasileiro, oferecendo de cartilhas didáticas (porém não superficiais, nem panfletárias) ao acompanhamento de decisões no Congresso, Judiciário e Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). O segundo (Acesse Aqui) segue o mesmo assunto no plano internacional, revelando uma articulação e promissora entre países como Brasil, Índia, Tailândia, Colômbia e China.
Ao tomar as duas iniciativas, a Rebrip enfrenta um dos grandes fantasmas da democracia contemporânea: a tendência a ocultar dos cidadãos do debate sobre temas cruciais, que seriam supostamente “técnicos”. A nota à imprensa que a Rede lançou sobre a tentativa de patentear o Truvada precisa de apenas três parágrafos para colocar o público a par do que está em jogo: a) Não se trata de droga nova, mas da simples compressão de dois fármacos (Tenofovir e Entricitabina) numa única drágea; b) O Brasil não reconhece a patente de nenhum dos componentes do Truvada. Amalgamá-los é um artifício do laboratório (Gilead, norte-americano) para obter exclusividade sobre a droga, afastando concorrentes e impedindo o desenvolvimento de genéricos. Em outros casos, visando o mesmo efeito, a indústria usou truque oposto: dividiu medicamentos… c) A evental concessão da patente levará o laboratório a vender a mesma droga por um preço substancialmente maior. (Estudos mostram que o Tenofovir teve seu preço reduzido em 31%, ao ser-lhe negada a patente). Quem paga a diferença é o usuário — ou o contribuinte, no caso dos remédidos contra a AIDS. Como se vê, não se trata de um cipoal de tecnicalidades, mas de um enredo político — que poderia perfeitamente estar nas páginas dos jornais, se estes cumprissem seu papel de espaço público.
Há uma novidade positiva no ar. Tanto no Brasil quanto na esfera internacional, os ventos mudaram e as transnacionais farmacêuticas não estão levando facilmente as disputas em que se envolvem. Renata Reis, a coordenadora do Grupo de Propriedade Intelectual da Rebrip, conta a rede ganhou as quatro polêmicas (“subsídios ao exame de patentes”, no jargão técnico) que abriu que no INPI desde 2006. A estratégia é trazer transparência ao debate. “Se depender da indústria, os processos são muito frios. Vive-se no mundo das moléculas. Nossa atuação tem apontado as consequências sociais, políticas e econômicas da eventual concessão de patentes. Colocamos na mesa temas como o preço dos remédios, o acesso da população a eles, a sobrevivência e desenvolvimento da indústria nacional. Invocamos a Constituição, segundo a qual a concessão de patentes deve levar em conta o interesse social, não a vontade de empresas. Faz toda a diferença”, explica ela.
Há vitórias na arena internacional, também. A revista virtual Outras Palavras publicará amanhã (25/8) o incrível caso em que a União Europeia destruía medicamentos em trânsito entre a Índia ou China e a África ou América do Sul. Eram perfeitamente legais, tanto nos países de origem quanto nos de destino. Mas os governos do Velho Mundo (onde há notória concentração de mega-corporações farmacêuticas…) julgavam-se no direito de bloquear sua passagem.
As políticas europeias foram condenadas em maio, numa sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), realizada em Madri. Uma coalizão de ONGs e movimentos sociais (inclusive europeus) articulou a denúncia. Embora o TPP seja uma corte simbólica, sem poder efetivo, à mesma época os governos do Brasil e Índia questionaram na Organização Mundial do Comércio a atitude da UE. Foram apoiados por China, Argentina, todos os países africanos e um elenco de ONGs internacionais. Têm grandes chances de vitória.
Nos novos sites criados pela Rebrip, chama atenção o esforço para popularizar um tema omitido pela mídia. (Quase…) não se recorre a jargões, nem à adjetivação. Informa-se; sabe-se que os fatos são eloquentes. Talvez seja outro sinal dos tempos. Alguns movimentos sociais percebem que já não basta falar para si mesmos. Denúncias podem ser herméticas. Mas para construir novas relações sociais, é preciso ousar ser maioria…
Fonte: Outras palavras – Pinto de Cultura, Jornalismo e Mídias Livres, 24/08/2010. Acesse Aqui