Como não falar sobre câncer

Nós confundimos câncer com guerra, os médicos e os pacientes muitas vezes se encontram no meio de uma guerra civil não intencional, lutando pela vida até o fim. Nós criamos, inadvertidamente, uma cultura em que a morte é considerada um fracasso, e extensão da vida é igual a vida.

Isaac Chan (*)


A rosto dela era o rosto de alguém derrotado pelo câncer. Nossa conversa foi depressiva. Ela queria “lutar” para continuar o tratamento. Mas não havia mais opções.

Lembro-me vagamente de falar, me sentir irremediavelmente mal equipado. Eu, também, me senti derrotado. Como um jovem médico oncologista e aspirante, eu me perguntava: Como é que podemos nos preparar e preparar os nossos pacientes para essas conversas?

Felizmente, eu não sou o único a ter dificuldade com essa questão. Um novo tema na medicina surgiu: como falar sobre a morte. Como um campo, a oncologia tem estado na vanguarda deste movimento. Alguns sugerem exposição a situações de fim-de-vida obrigatórias durante a faculdade. Outros enfatizam a criação de mais recursos para os pacientes e médicos, a fim de incentivarem o planejamento da morte.

Mas, a fim de facilitar e promover essa conversa difícil, é preciso primeiro mudar as palavras que usamos para discutir o câncer.

Quando a Lei Nacional do Câncer (EUA) foi assinada em 1971, a vontade política e social da nossa nação foi focada em uma “guerra contra o câncer.” Nosso amplo uso desta linguagem está enraizado em uma história propagandista de promover a crença de que, com recursos suficientes, esta é uma guerra que vamos ganhar. Consequentemente, a vitória ficou definida apenas por “derrotar o câncer”, ou encontrar uma cura.

O site da American Cancer Society pede para nos juntarmos à “luta contra o câncer”, e a maioria dos meios de comunicação públicos relacionados ao câncer são embalados com mais figuração de guerra. Embora a descrição do câncer como guerra resultou em atenção e angariação de fundos para o tratamento do câncer, pesquisas e sobrevivência sem precedentes, um equilíbrio deve ser alcançado entre esses esforços bem-sucedidos e a linguagem, que é uma avaliação realista do que pode ser feito, hoje, para o paciente.

O câncer é uma doença única. Para avançar ainda mais na analogia da guerra, o câncer não é um agente estrangeiro infiltrando nossos corpos, como uma infecção – o câncer é um golpe de Estado, um crescimento de tumor a partir de dentro de nós. Um dos grandes paradoxos do tratamento do câncer é que atacar o câncer significa, inevitavelmente, atacar nossos próprios corpos.

No entanto, porque nós confundimos câncer com guerra, os médicos e os pacientes muitas vezes se encontram no meio de uma guerra civil não intencional, lutando pela vida até o fim. Nós criamos, inadvertidamente, uma cultura em que a morte é considerada um fracasso, e extensão da vida é igual a vida.

É hora de mudarmos nossa retórica. Palavras afetam a percepção, e para alguns pacientes, uma “cura” não é sempre uma meta alcançável. Escolher palavras que não focam na destruição do câncer dá a pacientes e médicos a liberdade de se envolver em discussões sobre outros tratamentos, como cuidados paliativos, retirando a crença de que qualquer curso diferente de “lutar para viver” de alguma forma significa “desistir”.

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Então, como vamos fazer essa alteração? Como acontece com a maioria das coisas na medicina, ela começa com o paciente.

Uma vez confrontados com um diagnóstico de câncer, a tentação do médico é iniciar um caminho pré-determinado de tratamento para o paciente. Em vez disso, devemos dar um passo para atrás antes de prosseguir com os detalhes do que fazer a seguir. Um script recomendado, mas não frequentemente usado é primeiro perguntar ao paciente: O que você entende sobre a sua doença e o que você quer saber? Quem entre seus amigos e familiares podem dar apoio? Quais são seus objetivos na vida – tanto a curto e longo prazo?

Isso cria um senso de camaradagem. Devemos evitar frases como “nós vamos lutar contra isso” ou oferecer falsas esperanças. Em vez disso, eu advirto pacientes com câncer avançado que a terapia pode ser a opção para salvar vidas que estão atualmente ajudando-os a atingir seus objetivos, mas pode chegar um momento, no futuro, que o tratamento médico adicional vai realmente impedir a sua alegria de viver. Isto é semelhante à técnica de enquadrar as discussões de forma a esperar o melhor, mas se preparar para o pior.

Os médicos podem orientar os pacientes por meio dessas discussões envolvendo especialistas em cuidados paliativos, cujo papel é melhorar a qualidade de vida por meio de apoio sintomático e psicossocial. Este apoio varia de tratamento de dor, insônia, e ansiedade para atender às necessidades espirituais e ajudar os pacientes a entenderem sua doença e lidar com o estresse relacionado a ela. Envolver os seus serviços logo após o diagnóstico de câncer tem demonstrado que não só consiste em aumentar a taxa de sobrevivência mas também aumenta o conhecimento em saúde e mostra resultados nos tratamentos de doenças associadas ao câncer, como depressão. Estudos mostram que estes efeitos se estendem até a cuidadores de pacientes.

No entanto, uma barreira para uma maior utilização dos cuidados paliativos é o equívoco de que os cuidados paliativos e hospitais de retaguarda são a mesma coisa, que a aceitação de cuidados paliativos significa “rendição” para a doença. Enquanto hospital de retaguarda se concentra no conforto de fim de vida, cuidados paliativos fornecem apoio em todo o espectro da doença, desde o diagnóstico até a morte. Uma vez que este conceito é explicado, cuidados paliativos são muitas vezes mais facilmente aceitos.

O resultado de ter essas trocas e de envolver cuidados paliativos no início do curso da doença é a quebra da falsa dicotomia entre cura e fracasso. Esta estratégia amplia a capacidade do paciente e médico de receber e prestar cuidados. Mas essas são conversas muito difíceis e estão cheias de medo e ansiedade. Como é que se conversa com um paciente que se sente aterrorizado quando dizem para ele se “preparar para o pior?”. É crucial para um médico normalizar essas conversas, talvez dizendo: “Eu discuto este assunto com todos os meus pacientes que enfrentam um diagnóstico sério”, e, em seguida, fornecer garantia de que seu paciente receberá assistência médica completa, se é curativo, paliativo, ou ambos.

Enquanto médicos aprendem a abraçar uma visão mais holística do tratamento do câncer, o discurso público em torno da morte e doença também deve evoluir. Ferramentas on-line, tais como “Vamos jantar e falar sobre a morte” são um passo na direção certa. Acabar com a “guerra contra o câncer” é outra.

Vamos parar com a conversa de guerras e, ao invés, sensibilizar, celebrando as histórias notáveis daqueles que sucumbiram ao câncer e aqueles que vivem atualmente com câncer. Como um dos meus pacientes eloquentemente me disse: “A morte não é uma ameaça, mas a condição que maximiza a minha vida”. Nossas intervenções médicas, mesmo poderosas, não são a única maneira de maximizar a vida. E fazer parcerias com meus pacientes para descobrir qual é a melhor forma é, na realidade, a melhor parte do meu trabalho.

Isaac Chan é MD, PhD, residente em medicina interna geral no Boston Medical Center. Tradução livre de Sofia Lucena, colaboradora do Portal do Envelhecimento. Texto publicado Aqui Imagem: “A Battle Scene” de Luca Giordano (Wikimedia Commons).

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