“Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai”, escreve Fabrício Carpinejar no Website Zero Hora.
E como se torna difícil aceitar esse inverso da situação, principalmente quando ainda queremos e precisamos de colo, do acolhimento de todas as horas, da cumplicidade velada. Eles, nossos pais, dominam nossa tumultuada montanha de sentimentos apenas com míseros olhares. Um punhado deles e tudo sobre nós é revelado.
Que relação é essa que nos faz tão frágeis, dependentes e, porque não dizer, saudosos da ordem natural, aquela de quando éramos crianças socorridas pelas mãos gentis e, ao mesmo tempo, enérgicas de nossos queridos que, um dia, tiveram a gentil e adorada ideia de nos ter?
É, mas esses pais já não são mais os mesmos; lépidos, ágeis e poderosos. Como lembra Capinejar, “é quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso”.
Temos inquietações e carregamos como referência “aqueles” do passado de nossas calças curtas. Por que as respostas já não são mais claras como as de outrora? Elas demoram para vir, às vezes, custam cifras altíssimas de emoções. Que “nevoa” será essa que recolhe nossos velhos pais?
Onde estará “aquele pai” – eu diria também, aquela mãe – “que antigamente mandava e ordenava e que hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela – tudo é corredor, tudo é longe”.
Nossos olhos hesitam e negam o inevitável. Buscam “aqueles” do passado e encontram a estranheza de um desejo ávido de vida que não conhecemos, já que temos tempo ou pelo menos julgamos ter. Mas “eles” ainda têm a dura tarefa de manter a “terrível” bem distante, algo como um contrato que reza; “por hora não”. E nós, ainda os queremos, como antes, como sempre foram, livres dos remédios, da lentidão dos fracassos que a velhice anuncia.
Carpinejar continua: “É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios. E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz”.
Em tese parece fácil, mas quantas reviravoltas internas nos atormentam. Nossos pais ainda são nossos pais, só que diferentes: agora são eles que nos pedem a mão e o coração.
“Todo filho é pai da morte de seu pai”. Como filha que ama desesperadamente seus pais, sinto a dor do insuportável na frase de Capinejar.
Quem sabe, talvez, para amenizar, ele completa: “Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta”.
Ao ler essas palavras, penso que ainda tenho muito chão para tamanha compreensão. Saber que, logo, não mais os teremos, potencializa o sofrimento e turva o pensamento.
Sobre o envelhecer
“Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus. Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?”, lamenta Carpinejar.
Não somos educados para esse tipo de previsão. Crescemos achando que todos aqueles que amamos são eternos, que o fatal jamais atingirá os nossos. Somos seres invencíveis. E os pais, então? Esses são protegidos pelos Deuses. Esses seres supremos resguardam nossos queridos e os põem em segurança, bem longe de todos os males terremos. Pelos menos, assim pensamos. Quanta onipotência humana!
“E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia”, finaliza Carpinejar.
Como canta Milton Nascimento em “Encontros e Despedidas”: “A hora do encontro é também despedida. A plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar. É a vida…”.
Privilégio, mas também lamento de encontrar e despedir: lados de uma moeda chamada vida.
Referências
CARPINEJAR, F. (2013). Fabrício Carpinejar: “Todo filho é pai da morte de seu pai”. Disponível Aqui. Acesso em 15/11/2013.