O trabalho que vivenciamos, sem patrões, mas também sem benefícios formais, foi belo. Mas o cotidiano era sem glamour, real, duro, uma escola!
Nasci e fui educada em família de descendência italiana que guardava valores de vida e trabalho muito diferentes do que vivemos hoje. Meus avós maternos e paternos imigraram para o Brasil, especialmente para a cidade de São Paulo, que na virada do século XIX–XX já se estabelecia como mais desenvolvida, ao lado do Rio de Janeiro, e se mostrava propícia ao trabalho artesanal de qualidade, como o que já praticavam na terra natal. Eram artífices de calçados (lado paterno) e ‘modistas’ (lado materno). Eram incipientes os movimentos político-sociais e inexistentes os direitos trabalhistas.
Neste início do sec. XX os trabalhadores não tinham nenhum direito, os turnos de trabalho iam até tarde da noite e recomeçavam ainda de madrugada, incluindo crianças, como contavam minhas tias, confirmado em estudos que fiz posteriormente (Dulles, 1997).
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Nesse contexto germinaram as sementes do anarquismo e, posteriormente, do socialismo, trazidas por trabalhadores imigrantes, já engajados nessas lutas em seus países de origem. Dos princípios de base anarquista que guiaram as lutas dos trabalhadores nesse período destacamos a participação de italianos e espanhóis, países com tradição de enfrentamento social entre a classe trabalhadora e o patronato. Neste contexto conturbado de lutas meu avô, militante anarquista, é assassinado em uma festa no clube do grupo, na frente de minha avó grávida, e com a filha de 8 meses ao colo (minha mãe) em 31/12/1922.
Minha mãe é criada pelos avós e tios maternos com muito carinho, até o segundo casamento de minha avó. De temperamento determinado, aos 15 anos minha mãe vai morar com a avó paterna. Já tinha a escolaridade básica e um curso profissionalizante de corte/costura, na escola de freiras que frequentara. Começa a trabalhar como costureira – como eram chamadas as iniciantes à época. Conhece meu pai em uma festa – ele também participava das reuniões sindicais dos artífices de calçados, mas não era um militante como meu avô – e logo se casam, já que ambos eram órfãos.
Meu pai dá início a uma pequena confecção de sapatinhos para bebê, mas não deixa seu trabalho na empresa de calçados. Um ‘amigo’ advogado entra como sócio comprando as duas pequenas máquinas, e meu pai adquire as peças de couro de bezerro ou carneiro (?) mais as ferramentas necessárias ao trabalho feito, na maior parte, manualmente. Minha mãe desenha os modelos e supervisiona a confecção pelos artesãos, todos italianos. Em cerca de 3 anos estavam animados com os resultados e faziam planos. Um dia chega a cobrança de prestações atrasadas relativas às máquinas. Um golpe! O sócio retirava seu lucro e o dinheiro para pagar as prestações, mas não pagava. Vergonha. Falência. O sonho acabou ali. Nasce, então, a modista – denominação das costureiras de ‘roupas finas’ – minha mãe assume o comando da casa (inusitado à época).
O tempo foi passando entre tecidos, linhas, chapéus, flores e bordados, tudo feito à mão, figurinos importados – exigência à época – e clientes. Cresci tendo o ato de trabalhar como parte do cotidiano. Evidente que, ajudando, aprendi tudo o que minha mãe fazia, mas aquele não era o caminho que idealizava para mim. Posteriormente, escrevi que minha casa era a ‘oficina dos sonhos’ na qual se entreteciam beleza e ilusões, especialmente pela confecção de vestidos de noivas e festas, que viraram a especialidade da mama.
Costuravam-se sonhos e ilusões, que tinham início nas primeiras visitas, escolhas nos figurinos, muitas conversas. Depois a escolha e compra de tecidos com as clientes – uma tarde inteira nas lojas – muitas vezes, eu ia junto. Depois se discutia a ‘estética’ da noiva/mãe/madrinha/sogra, que na época costumava acompanhar os preparativos, e a modista dizia, às vezes cruamente, ‘você está gorda’; ‘tem muito peito’; ‘precisamos disfarçar seu ‘traseiro’; ‘tem a canela fina’ – entre outras ‘pérolas´. Sinceridade (às vezes excessiva) era característica da apreciada modista, que também era uma ‘usina’ de ideias e sugestões, e tinha muita segurança – às vezes ‘montava’ o vestido no próprio corpo da cliente, sem cortar o tecido (outra parte desta longa história).
As mães discutiam com as filhas ou noras, as ‘noivinhas’ choravam, a sogra dava palpites infelizes… As noivas choravam um pouco mais e vinha a ordem – Verinha, vai buscar um copo de água com açúcar. Assistia, sem saber analisar, mas aprendendo, uma explosão de emoções – um verdadeiro teatro! Momento muito delicado e importante para a profissional, pois seu bom gosto também estava à prova, caso a cliente não ficasse ‘bem’ vestida. Todas deviam chegar lindas e elegantes nas festas e casamentos, principalmente a noiva.
Escolhas feitas, entravam em cena outros profissionais artesãos: floristas, bordadeiras, chapeleiras, sapateiros, processo que era também responsabilidade da modista. Lembro bem do estresse e das noites sem dormir passadas na máquina… costurando os sonhos alheios. Ainda escrevo mais sobre essas antigas lembranças…
Durante todo este processo criava-se uma sociabilidade e cumplicidade de ambas as partes, mesmo considerando as diferenças sociais existentes, o que ‘transformava’ o ato de trabalhar, pois continha uma pitada de magia e, às vezes, era divertido também. Muito aprendi nessas vivências – flexibilidade, responsabilidade, etiqueta, diplomacia, desenvolvimento do senso estético, paciência e outras coisas, que continuo descobrindo.
Pude experimentar sensações, emoções, ver a criação do belo, conviver com a diferença de classe, aceitando a realidade como necessária e a importância do trabalho sem descanso de minha mãe, base de uma formação realista (como ela) sem enfeites, privilégios, amarguras – aprendi a viver a realidade e ser responsável por meus atos e escolhas. O ato de trabalhar artesanal que vivemos, sem patrões, mas também sem benefícios formais, foi ‘puro’, e posso dizer belo. Mas o cotidiano era sem glamour, real, duro, uma escola!
Meu pai se aposentou, na mesma empresa, sempre esperando a promoção prometida, que nunca chegou.
Na oficina artesanal da ‘mama’ teciam-se sonhos e ganhava-se o pão.
Foto destaque de Karolina Grabowska/Pexels