Após 15 anos de atividade profissional em UTI, como fisioterapeuta, Bernadete concluiu que uma mudança radical de vida estava prestes a acontecer. A fim de refletir sobre aquele momento, arrumou as malas, deu um “até mais” ao hospital e foi caminhar na Índia e no Nepal durante 45 dias. Andou em estradas estreitas, em vielas e no pé de algumas montanhas da cordilheira do Himalaia (do sânscrito, “morada da neve”).
Guilherme Salgado Rocha / Fotos: arquivo pessoal
Pois na Morada da Neve fica o Everest, a mais alta morada do mundo, que Bernadete não chegou a escalar, fiquemos tranquilos. Mas a decisão estava tomada: entrar de mente e alma na vida acadêmica. Desde então, essa andradinense (é de Andradina, interior de São Paulo), que está na capital, com a família, desde os cinco anos, tem um percurso intenso e extenso no magistério e na pesquisa ligada ao idoso. Nesta entrevista ela fala de sua tese de doutorado em Ciências Sociais, elaborada a partir do Projeto “Quem cuidará de nós em 2030?”, da PUC-SP. Formada em Gerontologia pela mesma PUC-SP, os idosos são, em essência, a maior motivação intelectual e profissional de sua vida nos últimos anos.
Portal – Voltou da viagem decidida, então?
Bernadete – Foram 15 anos em UTI, e me desgastei. Convivia direta e quase diariamente no limiar da sobrevivência, entre a vida e a morte, e, embora tivesse me preparado – muito – para atuar como fisioterapeuta, naquele momento não vislumbrava mais perspectivas de aprimoramento. Estava cansada. Cansada e longe do que gosto imensamente, que é estudar, descobrir e adentrar “outros mundos”.
Entrou na PUC?
Entro na PUC em 2001, no mestrado em Gerontologia.
O outro mundo do qual falava…
Sim, outro e complicado mundo. Simplesmente não entendia o que as professoras mostravam. Havia vários anos convivia apenas com saúde e doença, e agora vinham me dizer sobre cultura e sociedade, finitude, comunidade, pesquisa qualitativa, interdisciplinaridade… E nos indicavam autores dos quais nunca tinha ouvido falar. Olha, acho que demorei um ano e meio para começar a compreender o terreno em que estava pisando.
Como percebeu que enfim estava se “adaptando” àquela realidade?
Tudo acontecia gradativamente. Por exemplo, havia dois fortes grupos de pesquisa na Gerontologia. O primeiro deles, coordenado pela professora Úrsula Karsch, intitulava-se “Epidemiologia do cuidador”. O segundo, “Longevidade, envelhecimento e comunicação”, tinha em sua coordenação a professora Beltrina Côrte.
Trabalhavam como?
O grupo da professora Beltrina se dedicava a fazer levantamentos em jornais sobre matérias relacionadas ao idoso, e o da professora Úrsula se voltava à pesquisa de campo: entrevistávamos a mulher que cuidava do marido vítima de Acidente Vascular Encefálico. Aprendi muito com ambos, pois trabalhei com o banco de dados dos dois grupos. Também na pesquisa do meu próprio mestrado.
O que você estudou no mestrado?
Desenvolvi uma pesquisa com mães que cuidavam do filho que sofria de Distrofia Muscular de Duchenne. É uma doença genética, transmitida da mãe para o filho homem. Foi um período muito emocionante, pois os relatos são pungentes, e isso se estendeu ao dia da defesa. A nossa querida Suzana Medeiros, a grande idealizadora do curso de Gerontologia Social, a magna referência de todos os que estão na área, me disse, naquele dia da defesa, que também havia se emocionado às lágrimas ao ler o trabalho nos dias anteriores.
É uma doença degenerativa?
Dolorosamente… A criança não evolui, ainda perto dos sete anos não consegue subir escadas, correr. Sua vida dura, em média, 15 anos. Na época convivi com uma família cujo “jovem” tinha 30 anos, e está vivo até hoje. A doença foi estudada por um renomado neurologista francês, Guillaume Duchenne, que viveu no século 17. E ele ainda desenvolveu estudos usados até hoje pela fisioterapia, a eletroterapia, que ajuda sobremaneira na recuperação e tratamento de doentes.
Mas falávamos de seu trabalho nos grupos da PUC, durante o mestrado.
Pois bem. Trabalhei com diário de campo e estatística, e isso mudou não apenas o meu olhar, mas a minha atuação profissional. Aos poucos, me transformei em uma pesquisadora. Encerrado o mestrado, fui dar aulas na graduação. Era um sonho antigo ser professora. A graduação me encantava, uma oportunidade de refletir sobre minha própria prática, daqueles 15 anos de UTI, tendo em mãos duas lentes: a cultural e a social, e assim incentivar o aluno – profissional do futuro – a ampliar seu olhar e ver além do corpo.
Em que aspecto?
Ao ser incluída na grade da graduação, a Gerontologia contribui para a eliminação de preconceitos e estigmas contra a velhice, e pode propiciar ao aluno o entendimento de seu próprio envelhecimento, por exemplo. E isso é grandioso. Eram alunos da enfermagem, fisioterapia e biomedicina. Dei aulas para o serviço social, como professora convidada.
Em qual universidade?
Na Universidade Ibirapuera, que acabou fechando. Fiquei lá três anos, de 2005 a 2008. Nessa época recebi um convite para fazer doutorado, dentro do Projeto Saúde, Bem-estar e Envelhecimento, da Faculdade de Saúde Pública da USP, com apoio da Organização Pan-Americana da Saúde, OPAS. Passara três anos como professora da Ibirapuera, mas me sentia extremamente contaminada, no bom sentido, pelo olhar qualitativo da PUC, com o qual havia convivido no mestrado em Gerontologia. Apesar de amar o projeto de Saúde Pública, o tipo de análise por ele proposto era numérica, e me vi com muita dificuldade de produzir algo. Estava nesse dilema, quando decidi voltar à PUC, pelas inesquecíveis mãos da professora Maria Helena Villas Bôas, cujo talento merece uma entrevista isolada, só sobre ela.
Por quê?
A professora Maria Helena tem a grande facilidade de unir a pesquisa quantitativa, dos números, à pesquisa qualitativa, ligada à antropologia. E, particularmente, ela tinha, à época, e mantém, um percentual de 100% de compreensão em relação às minhas aspirações. E isso, para uma aluna, é difícil de dizer em palavras, expressar a intensidade da minha gratidão à professora Maria Helena.
Bem, mas você estava no doutorado, não é?
Fiquei de 2009 e 2010 ainda no doutorado, ligada à PUC. Mas aí cometo um desses deslizes, felizmente rápido. Havia decidido, lá naquela época do Nepal e da Índia, que não mais atenderia como fisioterapeuta. Entretanto, fui selecionada para trabalhar no Centro de Reabilitação, no Morumbi. Decido ir, tranco o doutorado e lá fui eu.
Em sua visão e em sua prática, qual aspecto a afasta do atendimento hospitalar, ou de um centro de reabilitação como esse?
Basicamente, por se tratar de um atendimento físico de reabilitação. O fisioterapeuta permite que sua atividade profissional se resuma a isso, a uma visão clássica do corpo fragmentado de seu contexto biopsicossocial e até mesmo espiritual e finito, enfim humano. Mas também já conhecia este “rito”, e não era mais o meu caminho. Houve um acontecimento marcante nesses meses de trabalho na Reabilitação, e que certamente me ajudou a perceber que realmente não poderia mais fazer parte da minha vida aquele tipo de trabalho. Veio um idoso se internar, acompanhado pela mulher. Simples, humilde, tinha apenas um par de chinelos. Acho que alguém comentou com ele, acabou conseguindo um par de sapatos bico fino, que visivelmente nada tinham a ver com a sua realidade. Embora aquele serviço fosse público, para ser aceito precisava estar vestido “adequadamente”, da cabeça aos pés. Do contrário, receberia “alta”. Ou seja, ao invés do serviço público adaptar-se para garantir ao cidadão seus direitos, o que acontecia era exatamente o contrário. Para evitar que ocorresse uma injustiça, comecei a atendê-lo descalço. Depois, consegui com a minha irmã Elisabeth um par de tênis, que ele passou a usar. Em suma: o que aquele homem usava nos pés era mais importante do que seu tratamento e recuperação.
E o fim desse tempo de trabalho, como foi?
Simples e rápido: a chefia ficou sabendo da minha “iniciativa pró-tênis”, entre outras, e me convidou a me retirar, nove meses depois de iniciado o trabalho, sob a alegação de “não adaptação” à equipe de fisioterapia, e que meu “perfil era acadêmico” e não condizia com o “perfil exigido” para aquele serviço. É um absurdo, trágico e irônico ao mesmo tempo, pois havia sido selecionada pelo meu currículo, mas nove meses depois, o tempo de uma gestação, foram ver que meu perfil não era compatível. Quando desejam mostrar intransigência e incompetência, as pessoas, especialmente os chefes, lançam todas as baterias em cima dessa pecha: o “perfil”…
Estamos em…
Final de 2010. Saio do Centro de Reabilitação e recebo outro honroso convite. A professora e amiga Beltrina Corte, da Gerontologia da PUC, me “convoca” para desenvolver o projeto “Quem cuidará de nós em 2030?”, com apoio do Ministério da Saúde. Seria, como foi, uma extensa pesquisa, de dois anos. O objetivo era avaliar os consensos entre gestores e usuários dos serviços públicos de saúde na Região Metropolitana de São Paulo e na Região Integrada e Entorno do Distrito Federal. Não sabíamos, então, que daí adviria um verdadeiro mergulho nas políticas públicas, o que acabou sendo consequência de tudo o que fizemos, mas não era o objetivo inicial.
Você comentava sobre o pré-teste. Como foi?
Fomos a campo verificar a consistência das perguntas que seriam formuladas a esses dois grupos, gestores e usuários. Somente a primeira fase, do pré-teste, durou quatro meses. Por meio do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento, o NEPE, sob a liderança da professora Ruth Gelehrter da Costa Lopes, docente da Gerontologia da PUC-SP, formamos um grupo de pesquisadoras. Fiquei quatro meses com uma equipe de oito entrevistadoras, habilitando-as para a pesquisa e qualificando o questionário, com pessoas da área de Gerontologia ligadas a duas universidades: PUC e USP. O instrumento foi refeito, acrescentamos perguntas, qualificamos o termo de consentimento legal, segundo todas as normas éticas. Da pesquisa resultaria o meu doutorado em Ciências Sociais, e teria que ser normativa e legal, como aconteceu. E aí fomos a campo.
O que aconteceu?
Encontramos uma dificuldade imensa, sobre a qual não havíamos refletido. Não conseguíamos que ninguém, mas ninguém mesmo, se voluntariasse a responder ao questionário. O motivo era simples: tratava-se de uma pesquisa, e normalmente quem está à frente como gestor de serviço público foge de pesquisas, pois para esse público significa literalmente “avaliação”. Temem que seja feita uma dissecação de seu trabalho como gestor, e o que nos movia não era isso. Mas as pessoas não compreendiam o famoso e batido “espírito da coisa”.
E como resolveram o nó?
Chegamos a ser aconselhadas por um advogado, aluno da Maria Helena, a recorrer ao Ministério Público, sob o argumento de que o funcionário público tem o dever de participar de pesquisas acadêmicas.
Foi feito?
Não, porque ouvimos de uma hipotética entrevistada que ela falaria, mas como “conselheira”, ou seja, membro do conselho de saúde, e não como gestora. Era isso!
Mudava-se, então, o centro da atenção?
Totalmente. A pesquisa passava a ter, agora, outro sujeito, que era o Conselho Municipal de Saúde, no qual se incluíam o segmento gestor e o segmento usuário. Iniciamos a pesquisa, que durou dois anos, desenvolvida em dois momentos: havia o primeiro contato, por telefone ou e-mail, seguido da coleta propriamente dita. E aqui registro meu agradecimento à Fapesp, que concedeu uma bolsa, auxiliando-me sobremaneira. Permitiu minha participação em distintos eventos, como em um congresso internacional na Costa Rica, em fevereiro de 2013, e em várias cidades, especialmente do Estado de São Paulo.
Fale mais especificamente sobre o trabalho, por favor.
Em primeiro lugar, constatamos que para haver resultados em políticas públicas devemos mergulhar nas políticas públicas. Parece meio óbvio, mas é a realidade. Devem ser estudados conceitos como Estado, cidadania, sociedade civil, e neles nós nos debruçamos intensa, metódica e seriamente. Do projeto inicial, após esse grande esforço de uma equipe dedicadíssima à pesquisa, resultou um levantamento teórico extremamente importante, que deveria ser estudado, sem falsa modéstia, por todas as pessoas envolvidas com o segmento idoso e, “por tabela”, com políticas públicas.
Por quê?
É real: constatamos um significativo desconhecimento das políticas públicas por parte das pessoas entrevistadas, ligadas à gestão municipal de políticas públicas, e isso é muito grave. Além do mais, algumas teimam em reduzir as políticas públicas à política partidária, o que é um dano terrível.
E política pública é pública.
Sim, e não partidária. Ela expressa direitos firmados na Constituição. Parece pouco, e pouco entre aspas, mas se houver, na prática, cumprimento das políticas públicas que expressam, sem dúvida alguma, os direitos assegurados na nossa Constituição cidadã, será um ganho impressionante, transformador.
Há esperança?
Percebemos que as pessoas preterem, por desconhecimento, políticas públicas que realmente mudariam o cenário caótico de atendimento ao idoso. Quando um gestor público tem uma estreita visão político-partidária, pretere ações que atenderiam à demanda daquele município, e, por conseguinte, da região. Além do mais, tão importante quanto, se promoveria o saber local. Por tudo isso, foi muito difícil analisar as respostas que obtivemos com o questionário.
Mas insistindo na esperança…
Relaciono o substantivo “esperança” a ações reais e efetivas. Se acontecerem, sim, podemos caminhar nessa estrada tortuosa, sinuosa e íngreme.
Mais do que o Everest?
Equivalem-se. No caso da pesquisa, há dois caminhos: em primeiro lugar, concluímos que as pessoas que têm condições de se qualificar e se habilitar em relação às políticas públicas que o façam com responsabilidade e seriedade, pensando no futuro seu e do próximo. E em segundo lugar, que o Ministério da Saúde, cujo apoio nesse projeto foi fundamental, não pare por aí, continue investindo. Afinal, Fomento à Pesquisa na Área de Envelhecimento de Saúde da Pessoa Idosa nada mais é do que atender àquilo que está previsto nas diretrizes, ou seja, é dever do Ministério da Saúde, não um favor.
Já houve a defesa da tese. Quais os rumos de sua vida profissional?
Saio fortalecida a partir do que conseguimos das Ciências Sociais. Meu desejo agora é publicar um livro sobre a tese, já escrevemos artigos acadêmicos, aguardamos a publicação. Atuo como professora na pós-graduação, e quero voltar à formação: dar aulas na graduação. Pelo mesmo e basilar motivo lá de 2005: acredito muito na utopia de colaborar com os jovens alunos para perceberem a importância do contexto em que vivem, refletindo sobre a própria vida, conhecer o local onde residem, o país que habitam. E a partir desse ponto de vista familiar expandir o olhar crítico e reflexivo, que vai além do próprio corpo.
Obrigado pela entrevista.
Foi ótimo falar. Gostaria de terminar registrando apenas, e voltando lá no início, ao papel essencial em minha vida da professora Maria Helena Villas Bôas. Tanto assim que eu e o Thuam, meu namorado, em julho vamos à Patagônia Argentina, e nosso desejo é que ela vá conosco nesse passeio.