“Esse é o legado que Sr. Vittorio Scabin conferiu aos netos e que hoje é mantido com a mesma dedicação, perfeccionismo e paixão, fundamentais para transformar o que seriam simples picolés em deliciosas porções de felicidade”, diz a propaganda. O problema é que o verdadeiro avô de Leandro Scabin, presidente da marca, era jardineiro e paisagista e jamais fabricou sorvetes.
Denise Morante Mazzaferro *
Recentemente iniciou-se um debate no ambiente publicitário quando o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) abriu processo ético contra a empresa Diletto (de picolés e sorvetes) pela história que ela conta sobre a marca. A história contada é que a receita do sorvete foi criada pelo avô do atual presidente da marca: “Esse é o legado que Sr. Vittorio Scabin conferiu aos netos e que hoje é mantido com a mesma dedicação, perfeccionismo e paixão, fundamentais para transformar o que seriam simples picolés em deliciosas porções de felicidade”.
O problema é que o verdadeiro avô de Leandro Scabin, presidente da marca, era jardineiro e paisagista e jamais fabricou sorvetes.
Há alguns anos, em Cannes, Paul Kemp-Robertson, da Contagious, fez uma linda apresentação sobre a arte de contar histórias. E avisou: começa agora a Era da Plenitude. Um ou dois anos antes, Regina Augusto falava algo parecido em seu editorial no Meio & Mensagem quando se começava a tendência do transmedia storytelling, cuja narrativa é basicamente uma grande história. E o tal do storytelling – método que utiliza palavras ou recursos audiovisuais para transmitir uma história e que está sendo muito usado no contexto da aprendizagem – virou palavra poderosa em powerpoints e palestras.
Tenho observado outras marcas, todas na área de produtos alimentícios, utilizarem-se da mesma técnica e colocando as avós no centro de suas receitas. É o caso da Bolo à Toa, uma marca de bolos caseiros, que em suas campanhas, refere-se à “com cheirinho da casa da Vó” e remete sua história e receitas à sua avó em Araçatuba. Outro caso é o Damadalê, uma empresa de comidas embaladas à vácuo que também conta sua história inspirada nas receitas da Vó Cida.
Em minhas pesquisas tenho observado a utilização dos idosos dentro das campanhas e comunicação das marcas, e a utilização das relações entre avós e netos, “avosidade”, é uma das que aparecem com recorrência.
Nestes casos, a avó ou avô são os personagens que remetem a tradição, a laços familiares, amor, felicidade, memórias. Ocupam um lugar privilegiado nas histórias, o lugar do conhecimento, da tradição, da experiência.
Nossas memórias estão povoadas por relações sedimentadas em laços familiares. Por meio delas é que as marcas criam sua identidade, construindo um imaginário, uma estória, um valor, buscando para si o tempo do outro.
A avosidade é também um tema que transparece diversidade, intergeracionalidade. Acima de tudo, a avosidade é um encontro entre gerações, uma relação ainda sujeita a preconceitos, estereótipos, como aqueles que se referem ao ser mãe, pai, marido, esposa.
Em decorrência da longevidade, o papel de avô/avó será ocupado por um número cada vez maior de pessoas, aumentando, consequentemente, o número de bisavôs/bisavós. Vivemos tempos modernos, tempos de novos arranjos familiares e, conforme citado por Roudinesco, arranjos da “família em desordem”.
Tempos líquidos, nos quais novas estruturas se sobrepõem às milenares estruturas familiares: avô, avó, pai, mãe e irmãos e um único casamento. Hoje vivemos os modelos instantâneos, dissolvíveis: dois pais, duas mães, madrastas, padrastos, vários avós e meios irmãos, relações do hoje. Graças aos novos tempos e novos arranjos, surgem distintas possibilidades para o avô/avó, novas “avosidades”.
É neste tempo que as marcas contam suas histórias, utilizando-as como argumentos de comunicação e solidificação. É dentro deste cenário atual e futuro que nos criamos e consumimos.
A pergunta que deixo para reflexão ao leitor é: Quantos avôs que faziam receitas de sorvete, avós que fazem bolos ou almoços de domingo, ainda nos restaram? Quem são hoje os avós e avôs e quem serão eles daqui a 10 anos? Qual será a história das diversas velhices que poderemos contar?
Referências
ROUDINESCO, Elisabeth. Família em desordem. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.
* Denise Morante Mazzaferro – Mestre em Gerontologia PUC – SP, Pós graduação em Marketing ESPM. Sócia da Angatu IDH. Membro da Rede de Colaboradores do Portal do Envelhecimento. Email: [email protected]. Site Acesse Aqui