As travestis idosas aprenderam desde pequenas que os valores morais vigentes não se misturavam bem com elas. Traçando uma analogia entre pensamentos do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) e as travestis idosas, podemos perceber que elas sentem desde crianças que as normas de gênero impostas não aumentavam sua potência de agir. Elas carregam o peso das normas sociais como camelos e se refugiam no deserto de suas solidões pessoais. Sofrem as primeiras exclusões e preconceitos desde tenra idade. Transformam-se em leoas que lutam contra o dragão da heteronormatividade. A partir de então, viram crianças que inventam seu próprio modo de viver, baseando-se no cuidado de si e em uma estética própria a custa de muita luta.
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Pedro Paulo Sammarco Antunes(*)
Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, através de seus aforismos filosóficos, fala sobre o percurso de um novo começo para a afirmação da vida. Trata-se das transformações ocorridas pelo espírito do homem que se torna camelo, leão e por fim, criança. Transformar-se em camelo representa ajoelhar-se para carregar todos os valores morais e a culpa do mundo. É o “dever ser” contido nos valores morais. Em geral somos formados culturalmente para sermos sempre camelos.
Tal como o camelo caminha carregado de mantimentos para o deserto, o homem caminha para o seu próprio deserto carregado de moralidades sociais. O vazio do deserto auxilia no processo de criatividade. Lá ocorre a segunda transformação quando o camelo vira um leão. Tem condições para se tornar o senhor e criador de seus próprios valores. Não será mais servo dos valores alheios.
É preciso destruir valores antigos para criar outros. Para isso é necessária muita força, luta e coragem para ir à cata do grande dragão que representa os valores morais vigentes. O “tu deves” do dragão deve ser vencido pelo “eu quero” do leão. É necessária a força do leão para abrir caminho para a liberdade do inventor. Para criar novos valores o leão sofre outra transformação e se torna a criança, que representa o devir. Essas fases não são cronológicas e, sim experimentáveis a cada instante em que se vive. Elas são parte de um processo contínuo. Liberar-se do peso das imposições morais é o caminho para produção do sujeito ético em sintonia com a sua existência.
(*) Psicólogo, mestre em Gerontologia e doutorando em Psicologia pela PUC-SP, colaborador do Portal do Envelhecimento. Este texto faz parte da sua coluna do Blog Dolado. Disponível Aqui