“Alegre-se. Nós vamos nos tornar senhoras respeitáveis, isso mesmo, suas mal-afamadas mães vão se tornar pilares da virtude. Seremos sogras perfeitas e haveremos de nos tornar avós magníficas para seus filhos.” Trecho do livro As Avós, de Doris Lessing, Companhia Das Letras.
Maria Antonia Demasi *
A família D. é bacana.
Vô não tem. Mas tem vó.
A vó da família D. tem 70 anos e já enterrou dois maridos.
A novidade agora é que ela está namorando um velho amigo que acabou de ficar viúvo da prima mais chegada. Parece que vai dar casamento.
Todos nessa família são cheios de opinião.
Do neto mais novo – (que acha que a vó deveria sossegar) – à neta mais velha (que preferia que a vó só namorasse), são todos experientes e qualificados palpiteiros.
Mesmo assim, sendo o centro das atenções, a vó R. anda tristonha.
O peso dos olhares e julgamentos está ficando pesado demais para ela.
É que a história de seus afetos, encontros e desencontros não foi assim tão fácil como essas poucas linhas podem dar a entender.
Como dizia o sábio pai da vó R, “você vê as pinga que eu tomo, mas não vê os tombo que eu levo”.
A vó R. sempre foi uma mulher admirada por seus atributos físicos.
Aos 46 anos, enviuvou pela primeira vez. Tomou um susto dobrado: estava só e a segurança de mulher linda, começava a balançar.
Mas aprumou e tocou o bonde. Chocou amigos, vizinhos e parentes ao casar-se com um homem cinco anos mais novo e viúvo da amiga mais chegada do falecido marido.
Foram anos difíceis para a vó R. que, nessa altura da vida, já tinha sete netos. Dez anos depois, o então jovem senhor, morreu em um acidente de carro. E lá estava a vó R., viúva de novo. E uma década mais velha.
Decidida, calçou-se na certeza de que a vida só fazia sentido com um marido para chamar de seu. Passou a descartar todos pretendentes que não eram casadoiros e tocou a vida.
Vários bondes passaram e a vida da vó R. agora está assim: prestes a se casar, sete netos, um deles gay, outra tatuada total, e um cowboy. E ainda, três filhos: a mais nova, também gay, o do meio indo para o segundo casamento e a mais velha e esquisita, buscando entender o envelhecer da mãe e o próprio, sem para isso usar de verdades enlatadas e os velhos preconceitos.
Entender que agora é uma velha enamorada com a ideia de envelhecer junto a alguém que conhece há longos cinquenta anos e que enfrenta, a cada dia, o julgamento daqueles a quem não deve a mínima satisfação e daqueles (- pasmem!) a quem ama tanto.
Sociedade e família parecem olhar para vó R. como uma personagem subversiva, pronta para mais um capítulo de um livro cuja trama abala as certezas e os valores do leitor.
R. é tudo isso e minha mãe, vó de minhas filhas. E foi com ela na minha cabeça e no meu coração que acabei de ler o livro, As avós, de Doris Lessing.
As avós, pela Cia das Letras
Roz e Lil são amigas inseparáveis desde a infância. Cresceram, casaram, tiveram filhos, e vivem na paradisíaca bacia de Baxter, um lugar cercado de rochas por todos os lados. O ambiente protegido, “bocejante”, além do qual o “verdadeiro oceano rugia e roncava”, é o cenário ideal para uma relação cada vez mais simbiótica. Morando em casas vizinhas, elas criam os filhos por conta própria – e eles se tornam adolescentes encantadores. Tão encantadores e próximos, que Roz e Lil não tardam a se envolver uma com o filho da outra.
Num efeito ambíguo e desconcertante, típico da grande literatura, o que poderia parecer repulsivo é tratado com naturalidade e bom-humor, fazendo a quebra de tabus soar como regra, e não como dramática exceção. Temas como amizade, maternidade e sexualidade ganham novos contornos enquanto Doris Lessing esmiúça as complexidades e armadilhas da forte ligação entre essas duas mulheres, e retrata a força com que elas confrontam as convenções familiares e sociais de sua época.
Doris Lessing
Filha de pais britânicos, nasceu em 1919, em Kermanshah, na Pérsia (atual Irã). Em 1925, mudou-se com a família para uma fazenda na Rodésia do Sul (hoje Zimbábue). Lá viveu até 1949, quando foi para Londres, levando o manuscrito de seu primeiro romance, The grass is singing, que obteve expressivo sucesso internacional quando lançado. Autora de uma obra extensa, que inclui ensaios, contos, romances e textos memorialísticos, Doris Lessing ganhou diversos prêmios, entre eles o Somerset Maugham (1954), o W. H. Smith Award (1986), o Mondello (1987), o Prêmio Internacional da Catalunha (1999), o Príncipe de Astúrias (2001) e o Prêmio Nobel de Literatura (2007).
* Maria Antonia Demasi é jornalista e mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia, da PUC-SP.