Anézia: a mensageira do otimismo

Conheci Momó há alguns anos, pois é mãe de uma pessoa amiga. Sempre a admirei pela sua forma simples de viver e por sua alegria contagiante. Não conhecia sua história com detalhes, mas sabia que ela tivera uma vida difícil e que escrevia poemas apesar de ter somente 30% da visão. Quando lhe disse que queria entrevistá-la Momó se prontificou imediatamente a me encontrar. Naquela ocasião eu soube qual era o seu verdadeiro nome e perguntei a origem de seu de apelido. Ela me explicou que o neto lhe chamava assim quando era pequeno, é uma “corruptela de vovó”.

Marisa Margarete Feriancic

 

Anézia Ferreira Gusmão Silva (Momó), numa tarde de autógrafos

Ela chegou na minha casa sorridente, toda arrumada e eu brinquei:
Momó onde você pensa que é a festa?
E ela me respondeu:
Eu me arrumei para vir aqui, te ver.

Quando ela sorri, seu rosto se ilumina e é impossível você ficar imune ao seu jeito faceiro. Eu sorri também e dei um beijo em sua face. Ela disse que estava muito contente de poder contar a sua história e passar uma mensagem de otimismo para as pessoas. E, de fato, Anézia tem muitas histórias para contar, sua vida como deficiente visual, sua aproximação com o budismo, o casamento, os filhos, a separação e sua maior paixão escrever poemas. Tenho tantos poemas escritos que daria para escrever um livro.

 

Nasce uma batalhadora

No dia 24 de setembro de 1939, em um sítio, na pequena cidade de Pedralva, Minas Gerais, nasce uma menina chamada Anézia, filha de D. Maria e de Sr. José Evaristo, um humilde lavrador, que plantava hortelã. A criança apresentava um problema visual e não enxergava nada até os 7 anos de idade. Isto lhe trouxe dificuldades para estudar e conflitos na relação com sua mãe. Conta, que tem do pai a lembrança que era um homem muito afetuoso, mas da mãe tem muitas lembranças tristes. Ela conta essa história com muita emoção.

Minha mãe me maltratava muito. Não aceitava minha deficiência visual. Eu estava sempre pendurada na roupa dela para me guiar. Às vezes eu a puxava tanto que um dia cheguei a rasgar sua saia. Eu caía muito e ela não tinha paciência comigo… eu me machucava muito porque não enxergava nada e batia em tudo que encontrava pela frente. Meu pai me protegia da minha mãe. Um dia eu caí na plantação e me machuquei toda, fiquei com mãos e braços cheios de farpas de madeira. Meu pai sentou-se no chão, me pegou cuidadosamente, sentou-me ao seu lado e disse: Vou tirar todas essas farpas. Ficou horas ali cuidando de mim. Eu me lembro dessa cena como se fosse ontem. Já faz quase 60 anos.

Embora deficiente visual, Anézia é uma pessoa que incentiva e eleva as pessoas ao seu redor, rompendo com todas as barreiras e limites. E, apesar de ter concluído apenas as primeiras quatro séries do ensino fundamental, escreve poemas e tem alguns livros publicados. Foi premiada quatro vezes na categoria Literatura do concurso “Talento da Maturidade”, promovido anualmente pelo Banco Real e também ficou com o 1º prêmio da ABSGI, na categoria Literatura da terceira Idade, com o poema o Castelo da Nova Era. Anézia tem paixão pelos livros e pode ser considerada uma autodidata.

A força de vontade e o prazer pela leitura

Depois dos 7 anos, Anézia começou a enxergar um pouco. Não conseguiu me explicar como isso aconteceu. Diz que foi aos poucos, que não fez nenhum tratamento.

Anézia teve uma infância sofrida e muita dificuldade para ler, mas isso nunca foi motivo de desesperança. Para compensar a cegueira, sempre prestava muita atenção no que ouvia e diz que assim acabou aprendendo muito. Conta com humor: eu presto atenção em tudo que ouço, converso com muita gente, eu aprendo muito com isso. Eu enxergo pouco, mas falo muito.

Ela mudou-se com seus pais para São Paulo. A mãe não queria que ela estudasse, mesmo assim, aos 12 anos Anézia foi para o colégio pela primeira vez. Na Escola Mista Agrupada de Americanópoles, enfrentou dificuldades. Tinha muita vontade de estudar, mas não consegui ler o que a professora escrevia na lousa. A professora Maria Tereza Toledo, sua grande incentivadora, pedia que seus colegas lessem a lição em voz alta e ela tinha que memorizar. Acho que isso me fez desenvolver uma boa memória. Até hoje, eu decoro tudo que eu quero com muita facilidade. Sei vários poemas de cor e declamo todos. Estão todos guardados na minha memória.

Aos 16 anos com sua força de vontade, a ajuda da professora e das colegas, concluiu o antigo curso primário, sempre com notas altas. Seu esforço sempre superou sua dificuldade visual. .

Uma adolescente casando

Aos 17 anos Anézia se casou. Eu enxergava pouco mais encontrei um marido que era muito lindo, de olhos azuis.. Eu era apaixonada por ele. Até hoje eu não o esqueci, mas não deu certo, ele era muito violento. Tinha outras mulheres e bebia muito. Quando ele bebia ficava agressivo e me batia muito.

Aos 18 anos teve seu primeiro filho. Este filho faleceu com 5 meses. Tive uma gravidez muito conturbada. Acho que foram os maus tratos e o bebê sofreu as conseqüências. Anézia engravidou outra vez e aos 19 anos teve uma filha. E 2 anos depois, teve outro bebê, um menino.

Aos 32 anos me separei. Ele formou uma nova família colocou dentro da minha casa e eu tive que sair. Fui acolhida pela família dele que gostava muito de mim e sempre me apoiou. Sofri muito porque ele ficou com os meus filhos. Foi um período muito difícil. Uma irmã dele me ajudou muito e graças a ela eu consegui ter meus filhos de volta. Minha filha eu consegui resgatar após 5 meses, o menino ficou com ele e eu só consegui ter ele comigo depois de 5 anos. Ele me perseguia porque queria me tirar as crianças. Foram anos muito difíceis. Ele me ameaçava e eu tinha medo. Embora tivesse dificuldade visual, eu sempre gostei de ler, e nessa época, conheci o budismo e comecei a estudar a filosofia de Nitiren Daishonin 1 . Isso me ajudou a encontrar serenidade, força para viver e criar meus filhos.

A aposentadoria e o preconceito

Aos 33 anos Anézia foi trabalhar num conhecido hospital de São Paulo, como copeira. Fiz os testes e passei nos exames e lá fiquei 3 anos . Ninguém percebia que eu era deficiente visual. Preparava mais de 200 bandejas por dia. Lia a as papeletas para preparar as bandejas com muita dificuldade e às vezes pedia ajuda para as minhas amigas. Decorava tudo o que tinha que ser feito e nunca fiz nada de errado. Depois de 3 anos tive que fazer alguns exames médicos e descobriram que eu não enxergava direito. Me afastaram do serviço, fiquei na caixa 2 anos e após esse tempo me aposentam por invalidez. Eu era muito querida lá dentro. Alguns colegas me defendiam dizendo que eu trabalhava muito melhor do que algumas pessoas que tinham uma visão perfeita. Eu gostava muito de lá. Foi uma pena não poder continuar.

A espiritualidade em sua vida

Praticante de Filosofia de vida de Nitiren Daishonim . (Filosofia de vida budista), Anézia vive para aprender com o grande filósofo Dr. Daisaku Ikeda1.Ela pertence a R.M Jabaquara Regional Fachine Conselheira do Distrito Vanguarda, é membro ativo da ABSGI ( Associação Brasil Soka Gakkai Internaciona l) e já concluiu o segundo grau de Kiogaku – Filosofia Oriental

Em outubro de 1981, a ABSGI, foi oficializada como organização não-governamental. Em maio de 1983, a instituição foi registrada como ONG do Conselho Econômico e Social da ONU, órgão cujas publicações e das organizações filiadas possuem o objetivo comum de propagar os ideais humanísticos e a filosofia budista para o desenvolvimento pessoal e o progresso social, visando a construir um futuro melhor para a Humanidade.

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Anézia fala com muita propriedade sobre o budismo e como ele foi importante em sua vida. Tive dificuldade em acompanhar seu relato, pois não acumulava muito conhecimento a respeito do assunto.

Anézia me dá uma aula sobre budismo

Acreditar em Buda, não significa crer e adorar a sua imagem, mas sim a verdade que ele descobriu e que constitui a Lei da Natureza. Esta crença que tem por centro as Leis da Natureza é que se denomina NAM –MYO- HO-REN-GUE-KYO. A principal prática budista consiste na recitação contínua do nam-myoho-rengue-kyo (pronuncia-se namiorrorenguequio) e a leitura do Sutra de Lotus (livro que complementa a oração ).

Esse esclarecimento me dá pistas sobre a influência da filosofia budista nos poemas de Anézia. A Natureza é seu tema preferido. Ela diz que tudo que aprendeu deve ao Dr. Daisaku Ikeda 1 e que gostaria que eu registrasse aqui as palavras dele:

Não há felicidade fora da realidade.
Ela é determinada em nosso coração
Se aceitarmos o desafio de fazer da nossa situação atual
Um campo de treinamento pessoal para polir nosso caráter.
O local em que nos encontramos agora, se tornará o próprio castelo da felicidade.

D. Anézia me ensina que, Nam-myoho-rengue-kyo é um Daimoku (oração) e escreve no papel dizendo que eu devo pronunciá-lo todos os dias. Ela estuda diariamente as escrituras budistas. E me explica que a recitação do Nam-myoho-rengue-kyo é feita direcionada ao Gohonzon.

Gohonzon é um pergaminho escrito por Nitiren Daishonin onde são estão descritos todos os aspectos da vida de Buda e como ele atingiu a iluminação. Segundo a filosofia budista, nam-myoho-rengue-kyo é a lei de causa e efeito que permeia todo o universo. Quando recitamos nam-myoho-rengue-kyo elevamos nosso estado de vida. Assim, adquirimos a sabedoria e a sorte necessária para resolver nossos problemas. Praticamos o Budismo para atingir a felicidade. Isso não significa que não temos problemas. Eles fazem parte da nossa vida. Adquirimos sabedoria e serenidade, para enfrentar e os obstáculos e dificuldade que nos cercam. Praticamos o Budismo para sermos felizes.

Quando perguntei se a espiritualidade ajudou a superar os obstáculos da vida, ela respondeu: ajudou sim, mas o que me deu força, foi tudo o que eu vivi. Meu sofrimento me deu a base para lutar pelo meu espaço, ser mais compreensiva, ter mais paciência e ajudar o próximo. A recitação do Nam-myoho-rengue-kyo ao Gohonzon é causa máxima de boa sorte na vida. Através da lei mística pode-se fazer o que o Budismo chama de Transformar o Veneno em Remédio. E foi exatamente isso que D.Anézia fez. Passei a enxergar a beleza da vida através do budismo, disse ela.

A poetisa

Hoje, Anézia é viúva, tem 2 filhos, 3 netos, um bisneto, e um humor invejável. Tem uma vida simples, ajuda muito a comunidade da ABSGI, faz visitas domiciliares para quem precisa de auxílio, canta no coral da associação e continua escrevendo poemas. Orgulhosa, ela diz que este ano, fez até uma modinha de carnaval chamada Linda Flor.

Hoje sou feliz, quero lhe dizer
Minha maior felicidade
Nesta grande cidade, foi encontrar você.
Vejam só o que aconteceu, entre você e eu
Numa noite linda, o nosso amor nasceu.

Este momento é especial
Se você não me encontrar, por favor não me leve a mal,
No dia a dia amor, nas nossas vidas, nada é igual.
Tudo só foi um sonho, de um belo carnaval.

E na aquarela de uma passarela
Você é a mulher mais bela, que eu sonhei para mim,
Uma linda flor, cheia de amor no meu jardim.
Vem meu amor não fique triste, hoje é carnaval

Tudo nesta vida é muito especial, minha querida
Quero te fazer feliz, me dê uma chance, por favor.
Hoje é carnaval, quero lhe dar todo o meu amor.
Vamos sair para nos divertir, se o seu amor ainda existe
Eu sempre estou aqui….

E na aquarela de uma passarela
Você é a mulher mais bela que eu sonhei para mim
Uma linda flor, cheia de amor
No meu jardim.
Vem meu amor, não fique triste, hoje é carnaval

A maturidade

Anézia vive com uma aposentadoria de 520 reais e diz que está muito feliz, que o dinheiro dá para tudo, até para passear e ajudar algumas pessoas que precisam mais do que ela. Fala com muito orgulho de sua independência. Tenho uma casinha, não é só minha, é herança de família, mas posso usufruir dela e não pago aluguel. Meu pai faleceu. Minha mãe tem 85 anos e mora com meu irmão mais velho, numa casa no mesmo terreno que eu. Eu não quero mal a minha mãe e em tudo que ela precisa eu ajudo. Não guardo rancor, mas tenho mais carinho pela minha cunhada que me ajudou muito. Também não me preocupo com bens materiais. Eu tenho tudo que preciso para viver. Saúde, filhos, netos, bisnetos, meu trabalho na associação e meus poemas. O meu maior gasto é com papel e caneta. Eu escrevo muito, diz sorrindo.

Quando lhe perguntei sobre a solidão ela respondeu: não sinto, de jeito nenhum. Às vezes se estou um pouco frustrada ou alguma coisa me aborrece, tomo um banho gostoso, ponho minha melhor roupa (uma peça vermelha ou amarela que me dá energia), me perfumo, passo meu batom e vou passear. Dou uma volta, faço uma visita, mas não conto nada, não vou visitar para reclamar ou aborrecer as pessoas. Só falo de coisas boas. Às vezes vou até o shopping, mas não compro nada, só para passear. Gosto de morar sozinha, ser independente.

Perguntei se não quis se casar, arrumar outro marido, ela confessou: já tive alguns namorados, mas nenhum que me enchesse os olhos.

Falamos também sobre a morte. Eu não tenho medo da morte, digo que vou morrer quando eu quiser. E ainda não quero. Esta é minha filosofia de vida. Nós nascemos e morremos e não há nada de errado nisso. Eu não tenho medo não! Vivo o presente.

Precisava finalizar a entrevista e Anézia se prontificou a encerrar com mais uma lição de otimismo, um trecho de seu poema A Força do Olhar.

Com a força desse olhar.
Muitas estrelas vão brilhar no seu caminho.
É só você acreditar,
Onde existe fé e esperança,
Não devemos lamentar.
Você nunca está sozinho em seu caminho,
Junto com sensei, vamos caminhar,
Felizes a sorrir…
E se abraçar…”
Onde a Gakkai representa
O palco daquela aliança
Cheio de amor e esperança.

Livros publicados com poesias de Anésia Ferreira Gusmão da Silva

– Antologia Literária: Best Seller 2004: São Paulo: Casa do Novo Autor Ed; 2004, p.16.
– São Paulo em Prosa e Verso: Antologia literária Rio de Janeiro: Litteris Ed; 2004, p.26.
– Escritos feitos de Amor: Antologia literária. São Paulo: Casa do Novo Autor ed; 2002, p. 50.
– Excelência Literária: O amor na literatura . São Paulo: Casa do Novo Autor ed; 2000, p.46

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1 Daisaku Ikeda é pacifista, escritor, filósofo, fotógrafo e poeta. Também conhecido como “Embaixador da Paz”, é presidente da Soka Gakkai Internacional (SGI), uma ONG, com base budista, filiada às Nações Unidas, que atua nas áreas da cultura, educação, paz, meio-ambiente, desarmamento nuclear e apoio a refugiados de guerra.

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