Amar, beber e cantar… Viver!

Amar, beber e cantar… Viver!

Ainda que trate dos últimos meses de vida de um homem condenado à morte por um câncer incurável, Amar, beber e cantar é um elogio à vida, uma homenagem à arte, ao poder do tempo e da memória, além de abordar a morte de modo natural, como desfecho da vida. O filme faz aflorar sentimentos latentes tanto nos personagens como em nós, espectadores: a consciência da necessidade de sermos menos ansiosos e mais leves, soltos e livres em relação à vida.

Maria do Socorro Carvalho (*)

Entre a primavera e o outono, três casais que vivem no interior da Inglaterra têm a vida tumultuada pelo comportamento enigmático do amigo comum George Riley, que todos sabem estar à beira da morte por causa de uma grave doença. Para desgosto dos homens do grupo, George exerce uma estranha sedução sobre suas mulheres, todas dispostas a deixarem os maridos para viajar de férias com ele, rumo à paradisíaca ilha de Tenerife.

Em torno dessa pequena trama gira a história do encantador Amar, beber e cantar (Aimer, boire et chanter, 2014), filme com qual o cineasta francês Alain Resnais encerra sua carreira artística de mais de sessenta anos, ao mesmo tempo em que sai de cena na vida, morrendo aos 91 anos de idade, no primeiro dia de março de 2014. Amar, beber e cantar havia sido lançado no Festival de Berlim, quinze dias antes da morte do realizador, onde ganhou o prêmio da crítica internacional de melhor filme por “abrir novas perspectivas ao cinema”.

Com essa adaptação de The life of Riley, peça do dramaturgo britânico Alan Ayckbourn, Alain Resnais traz mais uma vez para o cinema artifícios do teatro, como o jogo da encenação, uso abundante do diálogo e cenários artificiais para compor sua narrativa fílmica. Vemos então os personagens conversando em jardins pintados e com flores artificiais, paredes facilmente transpostas como cortinas, as estações do ano mudando pelas cores da cenografia e do figurino, o som ouvido fora do quadro como a sonoplastia usada em peças de teatro, etc.

O filme nos mostra os três casais presos a tormentos da vida na meia idade. O primeiro casal apresentado é Colin (Hippolyte Girardot), um médico do interior sem ambições, preocupado com a coleção e a sincronização de seus muitos relógios, e a inquieta Kathryn (Sabine Azéma, mulher do diretor Alain Resnais), que gosta de beber e, ao contrário do marido, é movida por sonhos e desejos. O casal que vemos a seguir é formado por Jack (Michel Vuillermoz), melhor amigo de George, um aristocrata rico que passa muito tempo ao telefone tentando responder às cobranças da amante, que vive com Tamara (Catherine Silhol), mulher gentil e tolerante, com quem tem uma filha. O terceiro casal é composto pelo tímido fazendeiro Simeon (André Dussolier) e pela frágil Monica (Sandrine Kiberlain), a mais jovem do grupo, uma professora primária que foi casada com George. Por fim, George Ripley, o centro da narrativa, aquele que vai provocar intensas modificações na vida dos seis personagens, mas que nunca aparece ao espectador.

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Ainda que trate dos últimos meses de vida de um homem condenado à morte por um câncer incurável, Amar, beber e cantar é um elogio à vida, uma homenagem à arte, ao poder do tempo e da memória, além de abordar a morte de modo natural, como desfecho da vida.

Construindo um delicado estudo da alma humana por trás do tom de comédia, o filme faz aflorar sentimentos latentes tanto nos personagens como em nós, espectadores: a consciência da necessidade de sermos menos ansiosos e mais leves, soltos e livres em relação à vida. E a ausência de paredes dos cenários parece nos mostrar que a saída para isso seria termos uma sociedade com maior abertura para a expressão de desejos e sentimentos bem como regras de conduta menos rígidas.

No jogo de cena montado por Alain Resnais, temos uma peça dentro do filme, ou melhor, o ensaio de uma peça dentro do filme e um personagem central que está prestes a morrer, em torno do qual tudo acontece, que modifica o comportamento de todos, mas jamais mostrado ao espectador. Na sequência final, quando George é sepultado, os amigos estão reconciliados consigo, com os outros e, principalmente, com a vida, em suas potencialidades de prazer apesar da dor. Não se pode deixar de pensar nesse enredo como uma referência à própria situação do cineasta, um reinventor da vida através de seus filmes, consciente de que seu tempo era curto, pois sabia que a morte chegaria a qualquer momento.

Ao comentar Amar, beber e cantar, o crítico francês Jean-Luc Douin, biógrafo de Alain Resnais, afirma que o cineasta rejuvenescia à medida que envelhecia, buscando a cada filme ser mais leve e divertido, sem negligenciar a profundidade e o rigor. Ainda segundo seu biógrafo, Resnais amava o sonho, a evasão do cotidiano pelo imaginário. Amar, beber e cantar é portanto o resultado final desse processo do artista em direção à leveza da vida. Por meio de George, Alain Resnais nos lembra que, na construção da vida, a alegria é mais valiosa do que a tristeza, e que se deve buscar sempre o amor e a arte como aliados. E para se conseguir isso, basta amar, beber, cantar… e viver.

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=3cfVxx-tR2E

(*)Maria do Socorro Carvalho fez o debate da sessão Itaú Viver Mais Cinema do dia 26/ago/2014. Ela tem doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1999) e mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1991), com pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2011). É Professora Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde atua como docente permanente do Programa de pós-Graduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) e na graduação em Comunicação Social. Publicou ainda como capítulos de livros: “Cinema Novo brasileiro” in História do Cinema Mundial (Campinas/SP, Papirus, 2006), “O desprezo ou ‘um cinema em busca de Homero’ ” in Cinema, lanterna mágica da história e da mitologia (Florianópolis, Editora da UFSC, 2009), “Para além das fronteiras – o cinema em outras rondas das Américas” in Literatura, memória e história (Rio de Janeiro, 7Letras, 2012), “A Capitu do Cinema Novo – aproximações entre literatura, cinema e história. 

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