Alzheimer: o outro e seus espelhos

“O que amacia a vida, acende o riso, convida a alma para brincar, são essas imensas coisas pequeninas bordadas com fio de luz no tecido áspero do cotidiano” (Ana Jácomo). Algo semelhante passa em meu cotidiano de cuidados à minha mãe.

Vera Helena Zaitune *

 

alzheimer-o-outro-e-seus-espelhosNo papel que tenho desempenhado nos cuidados com minha mãe, observar as relações do entorno que nos envolve tem sido uma ação constante. Com o seu quadro de Alzheimer e a evolução que o caracteriza, verifico que as marcas diárias de cada indivíduo dependem e se edificam em maior ou menor intensidade com as impressões e registros inerentes às pessoas com quem convivemos.

Melhor dizendo: depois da retirada da sonda naso enteral, trocada pela sonda gastro, a aparência da minha mãe melhorou muito. O seu semblante não denuncia mal estar, sofrimento e desconforto aparentes! Olhar para ela não tem provocado reações significativas, na medida em que não há tanta diferença a ser identificada. Um clima mais ameno tem acontecido nos encontros inevitáveis de um cotidiano comum a todos do lugar.

Nos relatos das senhoras ouço que “coitadinha, que dó me dava dela!” Ou então: “uma vez, eu fiquei com essa sonda por um dia, que horror. ” Também: “não me imagino com um negócio desse no meu nariz, muita dor. ” Depois: “ainda bem que ela tirou, não aguentava mais ver sua mãe sofrendo… me dá muito medo”. Mais ainda: “olha, ela sorri mais para mim, todos os dias eu mexo com ela e ela sorri, que bom!”.

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Nesse cenário, percebi diversos sentimentos, tais como: compaixão, generosidade, medo e repulsa dentre outros, além das tentativas de mudança de trajeto quando essa possibilidade existia a fim de não se depararem com minha mãe! A hipótese de vivenciarem tal experiência simbolizava uma ameaça constante!

Essas senhoras demonstraram de maneira natural que por intermédio do outro, nos enxergamos por espelhos semelhantes! E, muitas vezes a imagem que avistamos nem sempre é bonita, saudável e feliz!

Vale mencionar que, em paralelo, essas mesmas senhoras trazem dentro de si situações e exemplos permeados de alegria, força e aceitação da realidade que integram de que participam. Cada qual, de acordo com suas limitações, ocupa o seu espaço e atua com poder nas atividades que exerce, seja no arrumar a sua cama, no tricô e crochê de roupas e adereços, nos desafios dos jogos cognitivos, nas descobertas das leituras; assim como no exercício das tarefas propostas pela terapeuta ocupacional que as visita sistematicamente.

Constato que essa mescla de ações fazem parte da pluralidade humana que nos mobiliza e incita à vida que habita em cada um de nós. Oferecer e tornar possível a reinvenção de um dia a dia mais colorido em meio ao descoramento inevitável de algumas telas é o que essas senhoras protagonizam!

Prosseguir e cuidar com desvelo da minha mãe, sorvendo o aprendizado que desponta é o que “temos para hoje”.

* Graduada em História, Mestre em História da Educação, Especialista em Educação para o Envelhecimento e Alzheimer. Email: [email protected]

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