A dor física é resposta do organismo a uma injúria, uma agressão e é sentida graças à rede dos nervos e através do limiar de dor, sensação singular e peculiar a cada indivíduo. Como entender a convivência amigável que se estabelece entre o sujeito e a dor?
Carlos Eduardo Wilheim (*)
No dizer de Georges Canguilhem (2011), a medicina do século XIX surge como uma medicina dualista, um maniqueísmo em que a Saúde e a Doença disputavam o homem, assim como o Bem e o Mal disputavam o mundo. Segundo o autor, na patologia biológica existem dois fenômenos da vida: o estado da saúde, que é explicada pela fisiologia – quando os órgãos e sistemas funcionam perfeitamente -, e o estado da doença, a patologia, onde existe uma desarmonia, um desequilíbrio na fisiologia e que a ação do medicamento tem como finalidade trazer as propriedades de volta ao natural. O Pathos é um sentimento direto e concreto do sofrimento e da impotência.
O doente não está apenas anormal consigo próprio, mas em relação aos outros (como a pneumonia, ciática, afasia, etc). A anomalia pode se transformar em doença mas não é por si só doença. Assim, a doença não é uma variação da dimensão de saúde, mas passa a ser uma nova dimensão da vida.
É nesse sentido que introduzo Berlinck (2008) para assinalar que o dualismo está presente ao se associar a dor como sendo o lado mau. Vejamos como o autor compreende a dor: ela tem dupla identidade, é física e psíquica. Decorre de uma experiência desagradável ou penosa, proveniente de lesão, contusão ou estado anômalo do organismo. É um sofrimento físico que gera outros agravos como aflição, pena, mágoa, tristeza, angústia e depressão. Ele lembra ainda que há a dor moral, que ultrapassa o meramente fisiológico. Enfatiza que para o ser humano a noção de dor é um habitat, sinônimo de companheira na vida, especialmente na psicopatologia da dor.
Então, a dor física é resposta do organismo a uma injúria, uma agressão e é sentida graças à rede dos nervos e através do limiar de dor, sensação singular e peculiar a cada indivíduo. Como entender a convivência amigável que se estabelece entre o sujeito e a dor?
Sigo tentando relacionar essa rede nervosa, localizada abaixo da pele, conectada com o cérebro, que estabelece essa familiaridade que tão bem identifico nos meus pacientes. Os reflexos permitem a adaptabilidade do organismo ao meio, e assim se explica o fenômeno do estímulo-resposta.
A dor com forte componente psíquico, segundo Freud (1914), exige outros recursos para tratá-la. Freud acredita que o corpo manifeste um campo pulsional regido por pulsões parciais e desejos inconscientes. Sendo assim, a dor é causada por um excesso de excitação erógena que demanda uma descarga e fuga do objeto estimulante.
Como se sabe, a dor acompanha o idoso por toda a sua existência, afinal quem não tem alguma dor ao longo dos seus dias? O que está sendo considerado são os aspectos emocionais na administração desse processo.
Retomando às ideias de Berlinck, a dor é um limite “sui generis” porque é uma resposta a uma fratura nos limites do organismo e do psiquismo e nos remete à nossa finitude. Essa discrepância entre o organismo e o psiquismo tende a ser corrigida pela dor. Citando a artrose em indivíduos com oitenta e tantos anos, ela é uma manifestação esperada na fisiopatologia, e inevitável. A dor avisa o organismo de que o indivíduo está idoso e não suporta certos movimentos, que ao serem praticados geram o agravamento da dor.
Tanto a dor crônica, quanto o estresse, ou o desamparo apontam para uma impossibilidade de descarga da tensão pulsional (BERLINCK, 2008).
Dor e velhice são sinônimos?
Jack Messy (1999) ao refletir sobre o clichê “Não é belo envelhecer”, aponta que ao não se ver mais como objeto de desejo – impressão confirmada pela sociedade, que lhe sinaliza o quanto ele é agora improdutivo, inútil -, gera sentimentos carregados de negatividade.
A preocupação obsessiva com a saúde e a beleza do corpo pode revelar a negação das inevitáveis mudanças, próprias do processo de envelhecimento. A dor, como mecanismo de defesa surge como resposta à dificuldade de lidar com um corpo que não responde prontamente ao tratamento, como na juventude.
A situação rememora um passado que não se repete no presente, podendo gerar angústia ou dor. A angústia é aqui entendida como um “excesso de excitação que não encontra o caminho da descarga e, depois, como ameaça futura”, de acordo com Freud (vol.xii,1914).
No envelhecimento, a dor acompanha o sujeito ao longo de sua vida, na forma de artrose, artrite, enxaqueca, dor muscular crônica e fibromialgia. Algumas dessas enfermidades mesclam dor física com quadros emocionais de depressão e angústia. A produção de medicamentos para dor e para quadros depressivos são ministrados como forma atenuante desses quadros. Atenuantes porque a dor que acompanha tais processos não é identificável por uma única etiologia, de forma que o indivíduo necessita tratar-se por longos períodos, ora com uma classe medicamentos, como analgésicos, ora com antidepressivos, ora com ambos, numa espiral medicamentosa e hipocondríaca interminável (BERLINCK, 2008)
Quem não conhece alguém com quadro doloroso de enxaqueca, dor lombar, dor muscular indeterminada, um enigma para sua resolutividade. Todavia existem formas, de estimular esse processo biológico, que vem ao encontro do exercício, através de um comportamento de atividades físicas preventivas. Manter-se em atividade, provoca reações no corpo físico e nas funções cognitivas. Existe um apelo do “establishment cultural” de revalorização do idoso, na forma de ente consumidor e através dessa prática, manter-se cuidando de si.
Segundo Debert (1999), a cultura nos impõe a juventude sempre como parâmetro de beleza, associado ao saudável e produtivo.
A constituição do envelhecimento em um novo mercado de consumo sugere que o corpo tem uma plasticidade infinita e que é dever de todos mantê-lo jovialmente sarado.
Sabemos que a noção de dor é um habitat sinônimo de companheira na vida, e se inscreve na carne do ser humano, corpo frágil que solicita constantes cuidados, colocando a existência em permanente perigo (BERLINCK, 2008).
A busca de um estado de alívio, a analgesia, insere o fisioterapeuta no circuito das possíveis soluções, dentre os medicamentos, como já mencionado, que vão de analgésicos, antidepressivos, ansiolíticos, com seus respectivos efeitos colaterais. O descrédito em relação ao fisioterapeuta pode ser estendido à lista das ações ineficazes no combate à dor crônica.
Sob a ótica psicanalítica, a transferência também ocorre na relação do fisioterapeuta com o paciente. O paciente expõe seu íntimo ao profissional que o trata e este deve manter o controle sobre a sua neutralidade para manter a contratransferência. A busca pelo afeto, atenção e cuidado aponta para um desamparo, nem sempre atual. Na fisioterapia o corpo, suas dificuldades em manter a funcionalidade são objetivo primordial. No entanto, a dor física está inegavelmente associada a componentes inconscientes, muitas vezes associadas a experiências traumáticas infantis.
A relação de confiança é imprescindível para lidar com as resistências que podem estar dificultando a diminuição do sofrimento e do desejo de ser curado.
Referências
CANGUILHEM, GEORGES. O Normal e o Patológico,Rio de Janeiro, 2017.
BERLINCK, M. Psicopatologia fundamental. Escuta, São Paulo, 2008 p.93/200
FREUD.vol.xii,1914,in FREUDOONLINE, acesso em maio,2018
MESSY, JACK. A Pessoa Idosa não Existe. São Paulo,1999
(*) Carlos Eduardo Wilheim, sociólogo e fisioterapeuta, mestrando em Gerontologia Social pela PUC-SP, em 2018. E-mail: [email protected].