No Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos de Sapopemba, bairro da parte mais pobre da zona leste paulistana, o direito a aprender é defendido à bala. Muitas vezes, os guardas, que cumprem plantão em tempo integral, atiraram em bandidos e traficantes para proteger a escola.
Jorge Félix *
Lá dentro, pessoas como Carlos Alves da Silva, 43 anos, pernambucano de Quipapá -, um dos 400 piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) entre os 5.565 municípios brasileiros (0,552) -, se protegem contra a violência do analfabetismo. Há dois anos, ele conseguiu o que nenhum de seus 22 irmãos, perdidos na saga da vida nordestina, sequer sonhou: ler e escrever.
Trabalhador rural desde os 4 anos – quando “enterrava com o pé os carocinhos de milho na roça” – Silva chegou a ser empregado de uma indústria em São Paulo. “As dificuldades começaram quando instalaram uma máquina computadorizada e precisava de estudo. Aí, fui mandado embora.” Com deficiência física – a poliomielite o pegou desprotegido na infância -, trabalhou mais quatro anos como embalador, até a morte de sua mulher, vítima de câncer. Com quatro filhos para criar, aposentou-se. “Poderia estar trabalhando. O que me tirou do mercado foi o desconhecimento.”
Seu colega de escola, o pedreiro Reinaldo Souza Costa, 63 anos, alfabetizado há dois, concorda: “Se soubesse ler e escrever desde os 30 [anos] não teria parado, podia fazer outra coisa que dependesse menos do físico”. Desde os 35 anos, ele sonhava ler. Tentou. Mas dormia nas aulas, de cansaço. Costa trabalhou muitos anos, no Paraná, o dia todo em cima de um cavalo, cuidando de 20 mil cabeças de gado para um patrão que “tinha umas dez fazendas”. “Nunca com registro em carteira”. Sem direito à aposentadoria, não tem renda. Vive de economias e de bicos.
Destino melhor pode estar reservado para seu colega alagoano Admilson Barbosa, que nasceu pescador em Maragogi, há 39 anos, mas hoje, alfabetizado, é trabalhador formal em empresa de segurança. Ou para o jovem Francisco Eduardo de Oliveira, 18 anos, da cidade de Encanto, no Rio Grande do Norte, que, em sua terra, “nunca tinha visto pão” e agora é padeiro.
É difícil mensurar o impacto econômico da alfabetização de Silva, Costa, Barbosa, Oliveira e outros milhares de brasileiros que aprendem a ler depois de adultos. Essa dificuldade matemática tem servido de justificativa para governantes colocarem sob ameaça os programas de alfabetização de jovens e adultos. Embora o Brasil ainda insista em registrar 8,7% de analfabetos absolutos em sua população, a educação de quem completou 15 anos sem aprender a ler e escrever, em alguns Estados, deixou de ser um dever do poder público, como determina o artigo 205 da Constituição Federal, e cada vez mais é vista como um desperdício de recursos do erário. Especialistas ouvidos pelo Valor concordam que em vários Estados há uma aposta implícita de gestores de que podem erradicar o analfabetismo com duas ações – ou melhor, com uma ação e uma opção pela inércia: ensinar na idade certa e esperar a morte dos analfabetos mais velhos.
A base dessa ideia é uma visão fiscalista de alocação de recursos. Isto é, o setor público deve atuar como o setor privado e definir o volume de investimentos de acordo com o retorno econômico. Em setembro, essa espécie de pacto subjacente para resolver o problema do estoque de analfabetos do país veio à tona com uma declaração, sem meias palavras, do governador do Ceará, Cid Gomes, em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura de São Paulo: “Eu sou crítico de programas, que o Brasil já adotou no passado, de alfabetizar adultos. O Brasil já teve o Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado pela ditadura militar, em 1967], já teve aquele Solidariedade da dona Ruth [Alfabetização Solidária, criado no governo de Fernando Henrique Cardoso]. A meu juízo, o retorno é muito pequeno diante do investimento. Na minha cabeça, o que é que tem que fazer? Fechar a torneira. Essa expressão não é minha. É de um ex-dirigente da Unicef.” Como informou o governador, o Ceará decidiu investir no Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC) que, em 2012, resultou em uma queda de 0,1 ponto percentual na taxa de analfabetismo do Estado, que é de 16,4% – o dobro da nacional, de acordo com o IBGE.
Mesmo aqueles que defendem a tese de que o retorno econômico do investimento em alfabetização de adultos é menor do que o realizado em programas para crianças na idade certa para aprender, jamais defendem uma redução ou eliminação dos programas de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
“Por mera questão de custo e benefício, é verdade, o retorno do investimento é menor. Essa é uma avaliação puramente econômica. Mas não foi culpa dessas pessoas. A sociedade é que as deixou na mão, e agora deve arcar, independentemente de o retorno ser baixo”, diz Naércio Menezes Filho, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa. Em sua avaliação, o retorno econômico do impacto da alfabetização de pais e avós no estímulo para filhos e netos buscarem o conhecimento também não justifica o investimento. “É muito pequeno. A criança não vai fazer o dever de casa porque o pai aprendeu a ler. A questão é ética e moral: as pessoas têm direito a aprender e o Estado deve arcar, mesmo sabendo que o retorno é baixo.”
Embora destaque a inexistência de pesquisas sobre esse impacto, Menezes afirma que “o governo desistiu” desse investimento depois de várias tentativas frustradas. “O impacto é pequeno porque, se a pessoa aprende e não usa, o conteúdo se perde.” Ele cita pesquisas de James Heckman, prêmio Nobel de Economia em 2000, sobre a taxa de retorno do investimento em escola primária vis a vis a secundária na produtividade da economia americana.
“Não concordo com essa ideia de que não há retorno econômico para a família”, diz Priscila Fonseca da Cruz, presidente da ONG Todos pela Educação. “A alfabetização do adulto tem impacto nas crianças. Ver pais, mães, avós aprenderem influencia, sim, na educação, envolve a família no processo e produz um ganho econômico.” Priscila lembra que várias pesquisas empíricas mostram que a escolarização da mãe, principalmente, tem influência na continuidade e melhoria da qualidade do aprendizado dos filhos. “Os economistas precisam entender melhor esse efeito. O valor que é dado à educação na família quando um integrante deixa de ser analfabeto tem um impacto enorme.” Em sua opinião, esse retorno econômico é pouco considerado por gestores e economistas.
Silva, o pernambucano de Quipapá, aluno do CIEJA de Sapopemba, percebe esse efeito. Ele foi estudar porque, um dia, o filho o desafiou a ler um cartaz na porta da Caixa Econômica Federal. “Se você acha que estou lendo errado, então lê você”, ouviu do seu caçula. “Para mim, faltou o chão.” Silva percebeu que sua relação com os filhos estava sendo prejudicada por ser iletrado. Hoje, lê tudo que lhe cai nas mãos. “Agora conversamos lá em casa de igual para igual. A gente lê as coisas e discute e eu os estimulo a ler também. O resultado a gente sente quando pode ler uma bula de remédio, melhora a saúde, não tem depressão. Isso tudo faz da pessoa um idoso melhor.”
O presidente do Instituto Unibanco e ex-secretário de Educação Continuada do Ministério da Educação, Ricardo Henriques, concorda com Silva: “É claro que, analisando pelo lado das taxas marginais de retorno, elas são função da idade, mas é uma questão de justiça social, de direitos humanos. Se você quer construir uma sociedade contemporânea, deve investir em adultos”.
Henriques cita o exemplo do agronegócio, carro-chefe do PIB nacional nos últimos anos. “Qualquer ganho de alfabetização na população adulta do campo já terá efeito na empregabilidade no agronegócio, área em que a exigência de qualificação é bem maior do que na agricultura rudimentar, na qual, com o avanço da urbanização, estão restando as pessoas analfabetas nos lugares mais distantes.”
Outro risco de reduzir o investimento em alfabetizar adultos é apontado por especialistas: fazer dos jovens iletrados idosos analfabetos. Atualmente, de acordo com o IBGE, 98,5% das crianças de 7 a 14 anos estão na escola. No entanto, a taxa de analfabetismo absoluto, embora em queda, está em 8,7%, e a taxa de analfabetismo funcional cai num ritmo muito inferior. Desde 2003, o Bolsa Família, por exemplo, impõe como condicionalidade para o benefício a frequência à escola. Mas jovens como o padeiro Francisco Eduardo ainda representam, em números absolutos, um contingente significativo na população.
“Se o programa Bolsa Família existe há 10 anos, esse jovem tinha 6, 7 anos. Logo, não era mais para o Brasil ter analfabetos nessa idade, mas eles ainda são muitos”, afirma a ex-secretária de Educação de São Paulo e presidente do Seade, Maria Helena Guimarães de Castro. “Os governos, há algum tempo, passaram a dar pouca importância para a educação de jovens e adultos. Pensei que, com vários programas, permaneceria um estoque de analfabetos acima de 60 anos, mas quando olhamos, principalmente no Nordeste, o residual de jovens entre 17, 18 a 24 anos ainda é alto demais. Me surpreendeu a última Pnad [Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, do IBGE].”
Apesar de avanços no sistema educacional, diz Maria Helena, o Ceará é um desses Estados com elevado analfabetismo jovem. Um dos motivos dessa “desistência” ou “pouca importância” é a visão econômica. Mas outra razão está subjacente, de acordo com quem acompanha o tema. “A alfabetização de adultos não é uma prioridade, ao lado do ensino na idade certa, porque há um entendimento equivocado desse retorno e também, ou principalmente, porque a visibilidade da educação de adultos é menor do que a de crianças”, afirma a presidente do Todos pela Educação. Ou seja, a tendência de um impacto eleitoral bem menor explicaria uma parte do raciocínio do governador do Ceará. “Para os idosos, tem que ser um direito até morrer, não precisa ser uma política prioritária. Mas para os mais jovens tem que ser. Os níveis de prioridade são diferenciados”, afirma Maria Helena.
O que é preciso fazer? Henriques acredita que o primeiro passo é pensar no processo contínuo da alfabetização. Isso significa investir para evitar, como destacou Naércio Menezes, o abandono do conteúdo por falta de uso. “São dois saltos que precisam ser dados. O primeiro, tirar o indivíduo da inércia, do marasmo intelectual, para alfabetizá-lo. O segundo, bem mais difícil, é fazê-lo continuar os estudos. É preciso, portanto, um trabalho de sedução”, diz.
Depois de longa experiência, Henriques atesta que campanhas, placas de “matrículas abertas” na porta da escola pouco adiantam para seduzir alunos adultos. “É preciso uma busca ativa, procurar as ONGs, as igrejas, entidades da sociedade civil. Por isso o investimento é grande. Dá mais trabalho. É preciso buscar quem “pluga” nesse aluno, para convencê-lo de que vale a pena.” Um aspecto fundamental, segundo ele, é o ensino profissionalizante. “O caminho mais efetivo é mostrar para o aluno que vai mudar o trabalho dele.”
Desde 1934, com o Plano Nacional de Educação, do governo Getúlio Vargas, até o Programa Brasil Alfabetizado, do governo Lula, ou seja, há 77 anos, o país persegue a erradicação do analfabetismo. Sem muito sucesso, como observou Cid Gomes no “Roda Viva”. Mas por um motivo simples, apontado por todos os especialistas: falta continuidade na política educacional brasileira. Mesmo assim, o avanço foi grande, sobretudo, depois da Constituição de 1988, que chegou com o compromisso de acabar com o analfabetismo em dez anos.
“Atualmente, enfrentamos uma grande complexidade na educação de jovens e adultos, pois, quanto mais cai o analfabetismo, maior é a dificuldade de trazer os alunos analfabetos para a escola”, diz Macaé Maria Evaristo Santos, secretária de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação. Muitos desses alunos estão na zona rural, quilombolas, presídios, áreas indígenas, ribeirinhas e outros rincões.
“Tivemos queda no Norte e Nordeste, mas o esforço maior tem sido lá. Não se trata de pensar em retorno econômico. Quem pensa assim tem uma visão estreita. A questão é de direitos humanos”, critica a secretária. Uma das mudanças recentes no Programa Brasil Alfabetizado foi a permissão de constituir turmas com apenas 7 estudantes (em vez de 25, 30, como nas classes do ensino fundamental). O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação (Fundeb) também ajudou, com aporte de recursos para os municípios constituírem classes de alfabetização. Mais de mil municípios, segundo Macaé, foram beneficiados.
Um deles foi São Paulo. “Teremos receita para o EJA graças ao Fundeb”, diz o secretário municipal de Educação, Antônio César Callegari. “Não se pode olhar a questão apenas com a perspectiva de remuneração do capital, só o ponto de vista humanitário já justificaria o investimento no EJA, mas também há repercussões sociais e econômicas colaterais.” Segundo Callegari, o erro de muitos gestores é tratar adultos como crianças, desde o mobiliário das escolas até o material didático, passando pelo currículo e sistema pedagógico. “É um equívoco também e uma visão rasa apostar na diminuição da demanda manifesta. A demanda cresce quando se oferecer qualidade.”
É o que acontece no CIEJA de Sapopemba. Mais do que ensinar Silva, Costa, Barbosa e Oliveira a ler, o centro é uma escola de inclusão. Talvez possa estar aí uma pista para a mensuração de um retorno econômico do ensino de jovens e adultos jamais aferido por pesquisas. “Eu vou atrás de todo mundo, de jovens que foram expulsos de escolas por causa da idade, completam 16 anos, sem estar na série adequada, e trago para cá. Aqui eles conseguem uma reintegração”, conta a diretora, Thêmis Florentino. Em dez anos no CIEJA, ela já teve muitos alunos alfabetizados que chegaram à universidade. “Eu os inscrevo no Enem e eles conseguem pular etapas.” No entanto, esse resultado educacional ainda não é o retorno que se quer medir na EJA. Há um outro trabalho na escola.
É a inclusão econômica. “Como a grande maioria, quase a totalidade, veio do Nordeste em condições muito precárias, a vida familiar e econômica deles é uma bagunça e aqui oferecemos uma chance de eles entrarem na economia formal”, diz Thêmis. Ela fez uma parceria com o Programa de Educação Previdenciária do INSS e, a cada semestre, os alunos têm palestra sobre previdência social, formalização, microempreendedor individual. Outros palestrantes falam sobre direitos trabalhistas e Justiça gratuita.
Resultado: em poucos anos, foi um tal de barraquinha de cachorro quente pagar INSS, mulheres abandonadas com filhos pelos maridos receberem pensão alimentícia e trabalhadores como Costa, que trabalhou a vida toda sem carteira assinada, buscarem seus direitos na Justiça do Trabalho. “O palestrante do INSS não consegue nem tomar uma água e um café de tanto que é a demanda de perguntas e casos.” Sem falar nos acordos do CIEJA com a Defensoria Pública e com a Delegacia da Mulher, pois muitas apanham dos maridos quando decidem estudar. “Essa população chega aqui querendo muito mais do que aprender a ler. Querem cidadania e, a partir do momento que a conseguem, imediatamente devolvem para a sociedade em trabalho, consumo -, a mesma sociedade que negou tudo para eles.”
* Jorge Félix é jornalista, professor, doutorando em Sociologia e mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também é pesquisador (CNPq) do tema envelhecimento populacional. É membro da Rede de Colaboradores do Portal. Twitter/@jorgemarfelix. Facebook Viver Muito. Blog Economia da Longevidade: Disponível Aqui