O censo do IBGE de 2010 aponta 45,6 milhões de pessoas com alguma deficiência no país. E, se nem no direito de ir e vir essa grande parcela da população é plenamente atendida, imagine no direito à cultura. Um levantamento realizado pelo Curso de Especialização em Acessibilidade Cultural da UFRJ apontou as principais características desta realidade: iniciativas acessíveis são majoritariamente de instituições privadas ou mistas, direcionadas apenas ao público com deficiência, o que impede a diversidade de convivência.
Ricardo Shimosakai *
Imagine que você aguarda ansiosamente a um lançamento do cinema, mas é impedido de sequer entrar na sala. Ou então que tem vontade de ler aquele livro que seu amigo te indicou, mas, por mais que queira, não consegue ter acesso a ele. Esta é a realidade de milhões de brasileiros e brasileiras. Segundo o censo do IBGE de 2010, 45,6 milhões de pessoas têm alguma deficiência no país. E, se nem no direito de ir e vir essa grande parcela da população é plenamente atendida, imagine no direito à cultura.
Produtora cultural e mestre em Memória Social e Bens Culturais, Anajara Closs vive essa história na pele. Foi por ter mobilidade reduzida e por sua vontade de mudar as condições de acesso à arte que ela acabou movimentando a Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. Em 2013, Anajara convidou cinco pessoas com diversos tipos de deficiência para avaliar as condições da CCMQ. O resultado foi sua dissertação de mestrado, uma pesquisa-ação que escancarou os problemas: dificuldades de mobilidade nos vários andares da casa, falta de profissionais qualificados e ausência de sinalização e recursos acessíveis (audiodescrição e lupa, por exemplo) para a fruição das dezenas de opções culturais da Casa.
Na época, o tradicional espaço cultural de Porto Alegre estava passando por reformas, com a previsão de melhorias na acessibilidade, conforme a Lei estadual nº13.320/2009. No ano passado, a CCMQ foi um dos espaços a receberem o Selo de Acessibilidade da prefeitura, “conferido a estabelecimentos que assegurem a acessibilidade básica parcial”, diz o texto no site oficial. Os outros prédios premiados foram o Auditório Araújo Vianna, o Centro Municipal de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues (onde fica o ativo Teatro Renascença), a Fundação Iberê Camargo e a Usina do Gasômetro.
O Selo, porém, deixa claro que essa acessibilidade é apenas básica e parcial, como concluiu, por exemplo, o estudo da bibliotecária Mirela Strehl Zanona, de 2014. Em seu trabalho de graduação na Ufrgs, ela estudou as condições da Usina do Gasômetro. Ausência de vagas reservadas no estacionamento, ausência de sinalizações sonoras, visuais e táteis e piso inadequado a cadeirantes foram apenas algumas das conclusões.
Os problemas se repetem em todo o país. Um levantamento realizado pelo Curso de Especialização em Acessibilidade Cultural da UFRJ e divulgado no site do MinC apontou as principais características desta realidade. Segundo o texto, as iniciativas acessíveis são majoritariamente de instituições privadas ou mistas, direcionadas apenas ao público com deficiência, o que impede a diversidade de convivência. Da mesma forma, o domínio das tecnologias específicas é limitado a profissionais da iniciativa privada (fato que fortalece um nicho de mercado, mas que constitui um grupo restrito).
O documento aponta ainda que as políticas culturais “pouco conhecem o tema, reduzindo-o na perspectiva da acessibilidade física do espaço e não do produto cultural”, como bem observado nos espaços culturais de Porto Alegre. Anajara conta que, até pouco tempo, o item “acessibilidade” em editais era associado principalmente à gratuidade no ingresso das produções, referindo-se à acessibilidade financeira. Ela aponta que uma acessibilidade cultural plena passa por medidas diversas, como elevadores ou rampas adequadas (de acordo com a Norma ABNT NBR 9050), audiodescrição, pisos táteis, Libras e legendagem. Ainda assim, algumas iniciativas públicas pretendem alterar o cenário.
Entre as metas previstas no Plano Nacional de Cultura, instituído em 2010, a meta 29 é a única voltada para a questão da acessibilidade. O texto estabelece que o Brasil deve apresentar, até 2020:
“100% de bibliotecas públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atendendo aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da fruição cultural por parte das pessoas com deficiência”.
O MinC vem monitorando o andamento das metas e apresentando os resultados online. Os dados da meta 29, no entanto, são escassos. Os números mostram que, até 2014, apenas 7% das bibliotecas públicas do país cumpriam os requisitos, o que representa cerca de 400 em um total de 6 mil bibliotecas. Com relação a museus, o cenário é um pouco mais animador, já que 55% das instituições mapeadas são consideradas acessíveis. Ainda não há dados relativos a cinemas, arquivos públicos, teatros ou centros culturais.
No fim de 2014, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) deu um passo importante, determinando que todos os projetos de produção audiovisual financiados com recursos públicos geridos pela Ancine apresentem legendagem descritiva, audiodescrição e Libras.
As medidas atendem à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinada em assembleia na ONU. O Decreto Federal nº 6.949, de 2009, determinou que os artigos propostos pela convenção fossem executados e cumpridos integralmente. Entre as propostas, o artigo 30 é específico sobre a cultura, na medida em que estabelece a responsabilidade dos países no “acesso a bens culturais em formatos acessíveis e no acesso a locais que ofereçam serviços ou eventos culturais, tais como teatros, museus, cinemas, bibliotecas e serviços turísticos, bem como, tanto quanto possível, no acesso a monumentos e locais de importância cultural nacional”.
No mesmo ano, entrou em vigor no Rio Grande do Sul a Lei estadual nº13.320. Diz o artigo 9º:
“Os projetos de arquitetura e de engenharia, destinados à construção ou reforma de edifícios públicos, de propriedade do Estado, inclusive os destinados a autarquias e empresas de economia mista, incorporarão as disposições de ordem técnica consubstanciadas nesta Seção, a fim de facilitar o acesso à pessoa com deficiência física, excetuados os prédios tombados pelo patrimônio histórico nacional, quando tal medida implique prejuízo arquitetônico, do ponto de vista histórico”.
Com relação a prédios privados, entretanto, a lei ainda é restrita a shopping centers, hotéis, motéis e estabelecimentos financeiros.
Desafios e oportunidades
Para Anajara, os gestores culturais têm a responsabilidade de adequar os espaços e capacitar os profissionais a fim de atender a toda a população. “Já cheguei em um teatro e a porta onde havia a rampa estava fechada. Usaram a desculpa de que o público com deficiência é raro. Mas é raro por quê? Os gestores precisam deixar as portas abertas para todas as possibilidades e também estar abertos a críticas e sugestões que venham a contribuir para a acessibilidade”, defende.
Os produtores culturais também têm uma participação decisiva neste processo. “Na área da cultura, a acessibilidade é até uma oportunidade de ganhar mais, porque existe um nicho de mercado, e as pessoas estão sedentas por cultura”, acredita Anajara. No Rio Grande do Sul, empresas como a Mil Palavras e a Ovni Acessibilidade Universal constituem o mercado da acessibilidade cultural, produzindo legendas e audiodescrição para pessoas com deficiência auditiva e visual.
A audiodescritora Mimi Aragón, sócia da Ovni, diz que o cenário melhorou desde que começou a atuar no ramo, em 2010. Em “É Proibido Miar”, um dos últimos espetáculos em que trabalhou – introduzindo uma linguagem experimental em que os próprios atores faziam a audiodescrição -, todas as apresentações estavam cheias. “É imperativo reconhecer que existe este público e que as pessoas têm direito de usufruir da cultura, então nós precisamos suprir esta lacuna”, afirma.
A acessibilidade tem características diferentes para cada tipo de expressão artística, no que diz respeito à fruição. “Nas artes cênicas, a audiodescrição é ao vivo, porque as apresentações são orgânicas, cada uma é diferente”, conta Mimi. Nas artes visuais, há possibilidades como a visita guiada ou então um audioguia gravado, com pisos táteis para que as pessoas com deficiência visual tenham autonomia. Já na área do cinema, vários aplicativos de celular com tecnologias assistivas estão começando a se difundir no Brasil. Um exemplo é o WhatsCine, já em uso em salas de cinema do Rio de Janeiro e São Paulo, que conecta audiodescrição, libras e legendagem no smartphone ou tablet do espectador. O recurso, porém depende da boa vontade dos donos das redes de cinema, explica Anajara.
Mimi conta que se criou um mito de que acessibilidade é cara, o que não se confirma se ela for incluída no orçamento desde o início. “Um longa-metragem nacional que custa R$ 10 milhões, a gente calcula que a produção de audiodescrição e legenda custe hoje 0,2% do total, com a duração de 120 minutos. Isso não é caro, ainda mais se esse produto foi financiado com recursos públicos. Se todos pagaram impostos para isso, todos têm direito a assistir”, defende.
Em meio a isso, a formação profissional tem avançado no país, mas ainda é constituída por iniciativas isoladas, a exemplo do curso de especialização em acessibilidade cultural da UFRJ. A capacitação, gratuita, é direcionada a gestores públicos de cultura, Pontos e Pontões de Cultura, organizações da sociedade civil e professores de universidades públicas. Todos os anos, a UFRGS realiza o curso de extensão EAD Acessibilidade em Ambientes Culturais, em parceria com a universidade carioca. O caminho ainda é longo até que acessibilidade seja naturalizada e vista como fundamental. Para Anajara, a educação é o melhor transporte até lá. “Temos que aprender a enxergar a cultura do acesso. Acessibilidade é proporcionar autonomia às pessoas com deficiência. Acessibilidade é a possibilidade de que essas pessoas tenham cidadania plena. Não é difícil, é boa vontade”, diz.
Protagonismo no fazer cultural
As oportunidades não param na recepção artística, e o Grupo Signatores quer provar isso. Sediada em Porto Alegre, a companhia de atores com deficiência auditiva é a única em representatividade do sul do país e atua desde 2010 com a proposta de incentivar a formação de docentes e pesquisadores na área teatral e aproximar surdos do palco. O grupo promove oficinas de teatro e já tem quarto espetáculos no repertório, entre eles uma adaptação de Alice no País das Maravilhas.
Na última temporada, a peça teve apresentações lotadas, integrando todos os públicos e promovendo a cultura para qualquer pessoa. Um espetáculo interpretado inteiramente em Libras e com tradução em português para os espectadores ouvintes. Para a diretora da peça, Adriana Somacal, a LIBRAS tem um potencial de interpretação muito forte, já que surdos se comunicam com todo o seu corpo, não só com as mãos.
* Ricardo Shimosakai – Escreve para o Blog Turismo Adaptado – Fazendo a Diferença na Busca pela Igualdade. Acesse Aqui