A velhice é um percurso, uma busca contínua, é a dúvida persistente e o encontro com a resistência. Qual o lugar que o idoso institucionalizado pode ocupar?
Raimunda Nonata Martins Ribeiro (*)
Que os jovens envelheçam depressa. Que admitam acima de tudo a liberdade – acima inclusive do pão. Que não sejam marginais da condição humana, isto é, escravos consentidos. Escravidão consentida é o pior sintoma de nossa época. É preciso colocar a liberdade em primeiro lugar e neurose em segundo, porque ela é uma forma de protesto. Enfim, que a juventude seja livre e neurótica”. (CONSELHO AOS JOVENS – Nelson Rodrigues)
Contando um pouco da minha história, dos encontros com a velhice
Tenho a impressão que a imagem que me introduziu na velhice encontra-se na minha infância, em meio a tios avós e minha velha sábia bisavó.
As memórias se encarregam de retratar a estimada figura de uma matriarca muito querida e solicitada, o lugar, zona rural, tratava-se de uma mulher marcante, respeitada, a parteira e às vezes a curandeira. Eram contínuas as demandas que chegavam de longínquas distâncias a lhe procurar, muitas ocasiões em que vinham buscá-la a qualquer hora do dia ou da noite, para um parto operar.
Também era comum acompanhar as “prenhas” antes de o bebê anunciar, preparando o momento da “boa hora chegar”, dando os comandos, deixando tudo ao máximo preparado, necessário facilitar. Nesse momento era comum as crianças serem preservadas, sendo afastadas do ambiente.
À medida que fui crescendo, houve uma integração ao mundo dos velhos e dos adultos, podendo participar de alguns momentos da cena do nascimento, descobrindo que fazia parte daquela realidade, situações de profundo desafio. Presenciei algumas situações tensas, sofridas, e envoltas de muita oração e vigília.
Outros velhos se fizeram presentes na minha infância à época, importante registrar que se tinha em conta com a certeza da morte, conversava-se naturalmente sobre a condição do morrer, não teria como não conversar, pois fazia parte do cenário. Em algum lugar, o caixão já estava pronto, mas não era só o caixão, a “mortalha” também ali já estava a esperar que a vida chegasse a seu fim, este esperado e preparado. Falava-se natural e serenamente da “chegada hora da partida final”.
No papel sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida, vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa”. (Freire, Marcelino – Contos Negreiros)
Vida que segue e outros encontros com a velhice
Estudos sinalizam que o avanço tecnológico na área da saúde e nutrição, tem elevado exponencialmente a expectativa de vida (JUNGES, 2004). No entanto, o longeviver segue, em muitos casos, um curso incerto, imposto por diversos desafios, limitações e não raro, condições bastante precárias, sobretudo no que diz respeito à camada mais carente da sociedade, levando-a a envelhecer de forma não planejada, vulnerável e sujeita a patologias oportunas com o surgimento das limitações cognitivas, funcionais e as vezes doentes. Essa realidade acaba se tornando um caminho muito curto para a chegada a um espaço institucional. Lugar que de certa forma oferece ao idoso a única possibilidade de seguir tendo acesso às condições básicas de cuidado e assistência ao longo da vida que lhe resta.
Por outro lado, entra em jogo outra dinâmica de vida do sujeito, estará posta uma condição de pertencimento?
O ser humano nasce, se desenvolve, constrói sua história, seus laços afetivos, comunitários, sociais. Instaura sua singularidade, cada um a seu modo vai inscrevendo sua existência e, enfim, ao entardecer da vida, este curso precisa ser interrompido, estabelecendo lacunas, dor e ou resiliência.
Qual o lugar que o idoso institucionalizado pode ocupar?
Que dimensão de singularidade poderá ser vivida?
Qual o sentido da vida para seguir existindo?
Sabe-se da inegável importância da instituição como uma resposta alternativa que possa atender a situações de extrema vulnerabilidade, contudo, faz-se necessário considerar as consequências da ruptura que o sujeito passa a ser submetido, atentando para os riscos de maior degradação, submetendo o velho a um quadro de isolamento, solidão, tristeza e consequente adoecimento.
Se de um lado vê-se a realidade do idoso institucionalizado, do outro é fundamental sensibilizar-se com quem cuida, submetido o cuidador à sua incansável e estiva labuta, segue seu curso na dança da vida, executando seu fazer profissional, tão solitário e desprovido quanto a inércia do velho ali posto como se fosse um jogo em que as peças lentamente se mexem.
A preocupação com o cuidado pode levar o lar de idosos a adotar certas medidas protetivas que imaginariamente garantem a prevenção de danos, quedas por exemplo. Entretanto, por outro lado, produz sérias consequências, que fragilizam mais ainda os residentes, fraqueza muscular e óssea, apatia, atrofia muscular, de modo que esse modelo institucional compromete a prática do respeito, da dignidade e autoestima do idoso.
Se no papel o “Ser” de Totonha é menos do que o “Ser” no Vale de Jequitinhonha (FREIRE, 2005), qual é o “ser” que habita o Lar de Idoso?
Identidade
Quem é este que olha e não vê,
Que fala o que não ouve,
Que nome tens,
Qual idade habita teu ser,
Que experiências inscrevem tua existência,
Quais vidas deixastes pra trás,
E gostos, tens, quais,
Que encantos encantou teu viver,
Tens idade, origem, teus sonhos, os teve,
A pronúncia a ti cabível de vó/vô, heim,
Essa é a identidade que te restou?
Se pudesses restituir-te, moldar-te-ia teu retrato,
com quais cores, detalhes, curvas, sombras, brilho e luzes te delineavas?
Apresentar-te-ia a este outro que em ti, nada vê?
Referências
JUNGES, Roque J. Uma Leitura Crítica da Situação do Idoso no Atual Contexto Sociocultural – Estudo interdiscip. Envelhec. Porto Alegre, v. 6, p. 123 a 144, 2004.
FREIRE, Marcelino. Contos Negreiros, 2005
CONFEDERACION ESPANHORA DE ALZHEIMER, Los centros ‘libre de sujeciones’ apuestan por um modelo que respete La dignidad de lós mayores.
FONSECA, A. M. Organização. Boas Práticas de Ageing in Place. Divulgar para valorizar. Guia de boas praticas. Fundação Calouste Gulbenkian. Faculdade de Educação e Psicologia. Universidade Católica Portuguesa.
(*) Raimunda Nonata Martins Ribeiro – Psicóloga, atuando na Clínica; em Instituição de Longa Permanência (ILPI); participante de Grupo de Estudo em Psicanálise Winnicottiana. Texto escrito para o curso de curta duração Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento, da Pontifícia Universidade católica de São Paulo, ministrado no orimeiro semestre de 2018. E-mail: [email protected]