“A Máquina de Fazer Espanhóis” fala sobre o sentimento de abandono em relação aos jovens mais próximos, que se desobrigam e não cuidam quando é preciso.
Luis Pereira Justo (*)
CONFIRA TAMBÉM:
Gavetas
- 25/08/2022
Medir o quanto os indivíduos são estrangeiros uns para os outros é tarefa fadada a resultados imprecisos e enganosos. Geralmente inútil, o que é bastante difícil de ser percebido antes de se alcançar um tipo de maturidade. Por mais que haja proximidade entre as pessoas, como dentro das famílias, grupos de amigos, vizinhos, compatriotas, etc, é comum existir um abismo entre elas, que fica invisível até tornar-se um repente trágico e assustador, uma incontornável prova de solidão. No entanto, em aparente contradição com isso, todos somos irmãos. Mais ou menos gêmeos. Afinal “a família também vem de fora do sangue”. E disto é raro se ter ciência.
“A Máquina de Fazer Espanhóis” de Valter Hugo Mãe (Saurimo, Angola, 1971) conta algo da vida que podem ter os velhos (sem hipocrisias com o termo). Fala sobre o sentimento indignado de abandono em relação aos jovens mais próximos, que se desobrigam e não cuidam quando é preciso. Pinta a surpresa e o desconcerto ante o modo como os não velhos podem interpretar o que se passa nas fases tardias da existência, que ainda são vida. E Mãe ainda põe no centro da narrativa a potência da força criativa daqueles que, mesmo sem projetos baseados nela ou o conhecimento de que essa força é parte deles, persistem na inserção neste mundo e renovam os vínculos afetivos. Além de aprenderem a lançar mão de um humor que transcende a ironia e mais ainda o cinismo, que permite enxergar melhor. A estória passa-se num lar para idosos.
O romance permite adicionalmente a leitura num plano distinto das questões da velhice. A máquina de fazer espanhóis pode ser Portugal, que já foi Espanha e deixou de ser (ou não?). Tais engrenagens podem impor o sentimento de “estrangeirismo”, mas também a noção de pertinência a um colo ancestral, do qual se foi exilado sem a assimilação dos significados disso. A máquina pode ser o mundo todo, que gera filhos dos quais não cuida para sempre ou que talvez, olhando com mais coragem, nunca o tenha feito a contento.
Tais filhos, tão semelhantes no essencial e esquecem-se da fraternidade. Modalidade preciosa do amor. Menos óbvia e mais exigente com quem a pretenda exercer. Que torna os seres humanos menos estrangeiros entre si. Uns tão espanhóis quanto outros, tão portugueses quanto outros, tão outros quanto os outros. E, como diz o autor, “os outros justificam suficientemente a vida”. Em diversas circunstâncias.
Valter Hugo Mãe é o nome artístico de Valter Hugo Lemos, que além de escritor, é artista plástico e cantor. Nota-se no livro a influência estilística de José Saramago, mas a abordagem do tema é bem autoral. Apesar de algum experimentalismo na forma do texto, a leitura é fluente e agradável. Há graça no pensamento crítico e não é um espaço de mágoas e ressentimentos.
(*) Luis Pereira Justo – Médico, Especialista em Psiquiatria Clínica para Adultos, Mestre em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo. Atualmente Médico Psiquiatra do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do CRT-Aids da Secretaria da Saúde do Governo do Estado de São Paulo. Atua também em consultório privado. Seu blog: https://estantedojusto.com/. Texto publicado na Revista Longeviver, edição 15.
Foto destaque de Alena Darmel/Pexels