A máquina de fazer espanhóis

A máquina de fazer espanhóis

Kafka dizia que a literatura é sempre uma expedição à verdade. Verdades (a meu ver, no plural) que dependem muito dos ângulos, da bagagem de quem enxerga a vida e que, algumas pessoas com habilidade genial, conseguem traduzir em palavras, tocando profundamente e acessando sentimentos que surpreendem quem os lê ou ouve.

Isabella Quadros *

A máquina de fazer espanhóis é um livro assim, que fala diretamente aos sentimentos essenciais. A história feita para um pai que não viveu a velhice e escrita por valter hugo mãe, seu filho, considerado pelos críticos, um dos grandes autores da sua geração em Portugal e arrancando elogios de escritores como José Saramago, que comparou a experiência de lê-lo a “assistir a um novo parto da língua portuguesa”, como consta nas notas sobre o autor.

Elogios à parte, ler, e mesmo, folhear o seu livro, é uma experiência singular – uma mistura de refinamento literário e estética. Ali, nada é por acaso: capa, diagramação, os títulos que nomeiam os capítulos, a palavra lapidada e encaixada propositadamente em uma sequência de raciocínio que puxa o tapete sob nossos pés, sacudindo referências e certezas. Não é um convite, é um assalto no qual um mundo novo nos é imposto e onde mergulhamos involuntariamente.

O livro conta a história de um homem de 84 anos que, depois de ficar viúvo, passou a viver em um asilo. Somados a dor da perda, novos sentimentos o assolam, revolucionando percepções do personagem e, consequentemente, do leitor. O texto é escrito em letras minúsculas, mesmo quando se refere a nomes próprios – letras minúsculas para grandes e fortes sentimentos, que extrapolam o livro e quebram possíveis resistências do leitor, capítulo a capítulo.

O personagem Antônio Jorge da Silva se vê sozinho do dia para a noite num ambiente estranho, cercado por pessoas desconhecidas. Muitos sentimentos negativos o absorvem e quase o sucumbem (“eu sou daqueles a quem a vida doeu”). É nesse momento que o enredo subverte as expectativas, não aceitando uma parcial redução pessimista e ampliando os horizontes através do desnudamento da condição humana; sem tréguas e quase nos tirando o fôlego. A vida – passado, presente e futuro – expiada através da visão face a face de culpas e méritos pessoais e coletivos vivenciados ao longo de uma vida. Uma catarse que permite ao personagem novas possibilidades de viver. O velho é o outro mas é também o si mesmo – nua e cruamente. Para os sortudos que persistem na história de Mae, se é que existe opção (eu não consegui desgrudar do livro até chegar ao seu fim), é ofertado um espelho também, com a pergunta de quem e quantos somos afinal, confrontados com a efemeridade da vida que, por sua vez, é exposta através da narrativa, sem apaziguamento. Alguma semelhança entre fantasia e realidade?

” (…) a vida tem que ser mais à deriva, mais ao acaso, porque quem se guarda de tudo foge de tudo.”

Valter Hugo Mãe e “A máquina de fazer espanhóis” nos deixa à deriva, nos mostrando o quanto é possível irmos além de nós mesmos.

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