Vivemos hoje um conflito de civilizações entre o Ocidente e o Islã. Mas não foi sempre assim. No final do século 18, por exemplo, subitamente o Império Otomano parou de ser visto como uma ameaça e virou moda na Áustria. Os costumes e as vestimentas turcas tornaram-se a coqueluche da sociedade, contagiando a música e inspirando inúmeros concertos e óperas com temas otomanos.
Sergio Danilo Pena *
Nas óperas, os turcos foram inicialmente retratados como cruéis e lascivos, mas com o passar do tempo emergiram em papéis bastante mais benignos. Por exemplo, na ópera O rapto do serralho, de Mozart (1756-1791), que teve a sua première em 1782, o enredo se passa no século 16, em Istambul, no palácio do paxá Selim, um homem de grande sabedoria e generosidade.
Osmin e Pedrillo cantando a ode a Baco em uma produção moderna do Rapto do serralho encenada em 2003 pela Opera Pacific na Califórnia. Nesta versão a ópera se passa no Expresso do Oriente, famoso trem que ligava Paris a Istambul.
No palácio está Constanza (mesmo nome da esposa de Mozart), que havia sido capturada por piratas e vendida ao paxá, junto com os criados dela, Blonde e Pedrillo. Belmonte, namorado de Constanza, vai tentar raptá-la (isto é, liberá-la) do serralho – daí o título da peça. Para tal, ele e Pedrillo decidem embebedar Osmin, o capataz chefe do serralho. Osmin, um basso (paradoxalmente, pois ele devia ser em teoria um eunuco), resiste inicialmente, como bom muçulmano que não bebe álcool. Finalmente Pedrillo consegue inebriar Osmin e os dois juntos cantam em dueto uma cativante ode ao deus Baco:
“Viva Baco!
Baco viva!
Baco, que inventou o vinho!”
O repertório operístico, diga-se de passagem, está repleto de brindes e referências elogiosas ao vinho. O mais popular certamente é o brindisi do primeiro ato da Traviata, ópera de 1853 de Giuseppe Verdi (1813-1901), no qual Alfredo abertamente declara seu amor por Violetta (a “dama das camélias”). Há, entretanto, outro exemplo que acho encantador. É o brinde que Turiddu, o tenor-herói, faz no final de Cavalleria Rusticana, ópera de 1890 composta por Pietro Mascagni (1863-1945):
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“Viva o vinho espumante,
Na taça cintilante,
Como o riso da amante.
Infunde o doce júbilo!
Viva o vinho que é sincero,
Que alegra cada pensamento,
E que afoga o humor negro,
No doce embriagamento.”
Nesta altura do campeonato o leitor já deve ter percebido que estas minhas ruminações têm inspiração nas festas de fim de ano – a temporada mais etílica do ano –, em combinação com as experiências de janeiro, um mês preguiçoso, que nos proporciona tempo para colocar em dia o repertório operístico.
A molécula da longa vida?
Mas há outra razão para discutirmos o vinho nesta coluna. Acontece que ele é a fonte mais rica de uma molécula orgânica, o resveratrol, que talvez-possivelmente-quem-sabe-um-dia-esperançosamente possa vir a nos dar pistas para concretizar o grande sonho dos alquimistas e de toda a humanidade: o elixir da longa vida.
Molécula de resveratrol trans-3,4’,5-triidroxistilbeno, com pano de fundo de uvas vermelhas e vinho tinto, no qual ele é encontrado.
O resveratrol (trans-3,4’,5-triidroxistilbeno – ver figura) é um composto polifenólico encontrado em várias plantas. Ele é uma fitoalexina, ou seja, uma molécula produzida pelo vegetal como uma defesa contra a infecção por patógenos. O resveratrol é encontrado especialmente na casca das uvas vermelhas e é um constituinte do vinho tinto.
Para entender a importância e o mecanismo de ação do resveratrol, temos de voltar a 1935, quando experimentos em laboratório mostraram pela primeira vez que a restrição alimentar aumentava a expectativa de vida de camundongos em 30%. Mais tarde, verificou-se que o mesmo ocorria em uma variedade de outros animais experimentais, incluindo a mosca de frutas (drosófila), nematódeos e até a levedura, em que a restrição calórica aumenta o número de divisões celulares.
Destaque-se aqui que o aumento de longevidade por restrição calórica nunca foi demonstrado na espécie humana, havendo dificuldades éticas e logísticas para a pesquisa. Entretanto, há relatos encorajadores – mas não definitivos – de um efeito positivo em primatas.
Por décadas, cientistas tentaram entender a razão pela qual a restrição calórica prolongava a vida, até que a resposta foi encontrada em leveduras, nas quais se descobriu que o efeito era mediado pela indução de um gene chamado ”silent information regulator 2” (‘regulador de informação silenciosa’, ou apenas Sir2), que codifica uma enzima, a histona desacetilase dependente de NAD+.
Estudos de proteômica comparada mostraram que a Sir2 pertence a uma classe de proteínas que foram chamadas sirtuínas. Em mamíferos, há sete genes de sirtuínas, sendo que a SIRT1 é a mais parecida com Sir2. Estudos confirmaram que a SIRT1 era induzida pela restrição calórica em camundongos. De fato, a ablação (knock-out) do gene de SIRT1 causava diminuição do tempo de vida dos roedores.
Esses resultados levaram a uma corrida para verificar se seria possível encontrar, na natureza, uma molécula que conseguisse mimetizar os efeitos da restrição calórica na indução de SIRT1. Entre 18 ativadores de SIRT1 encontrados, o mais potente foi… (você adivinhou!) o resveratrol.
Resveratrol e longevidade
Em novembro de 2006 o grupo de pesquisadores liderados pelo cientista americano David Sinclair publicou na Nature um artigo demonstrando que a administração oral de resveratrol em uma dose de 22mg/kg/dia aumentava significativamente o tempo de vida de camundongos em laboratório.
Após isto, todo mundo começou a se interessar pelo resveratrol, ler sobre resveratrol, pesquisar com resveratrol e até tomar resveratrol. Uma pesquisa que fiz com o nome da molécula no catálogo PubMed de artigos biomédicos revelou 2.083 artigos, sendo 747 nos últimos dois anos. A mesma pesquisa no Google revelou 842 mil páginas na internet! Uma inspeção dessa literatura à vol d’oiseau mostra que, além de impedir o envelhecimento, o resveratrol é benéfico contra o câncer, doenças cardíacas, mal de Alzheimer, enfim, tudo o que o leitor possa imaginar, exceto (talvez) unha encravada.
Produto comercial contendo 50 mg de resveratrol em cápsulas, comprado pelo colunista através da internet.
Considerando que a fonte alimentar mais rica em resveratrol é o vinho tinto, caracteriza-se, assim, um forte estímulo para que o consumamos em doses liberais, cantarilhando ao mesmo tempo: “Viva Baco! Baco viva! Baco, que inventou o vinho!”
Muitos têm, inclusive, atribuído à presença de resveratrol no vinho a explicação do chamado “paradoxo francês”, ou seja, a observação (não incontrovertível) de que os franceses têm baixa prevalência de doenças coronarianas apesar de uma dieta rica em gorduras saturadas.
Infelizmente, tudo isto está bom demais para ser verdade. A concentração máxima de resveratrol em vinhos tintos europeus é de cerca de 13 mg por litro. Para que um adulto de cerca de 70 kg consiga ingerir resveratrol na dose dos camundongos de Sinclair (22 mg/kg/dia), seriam necessários 1540 mg, ou seja 128 litros de vinho por dia – quantidade certamente não recomendável. Já existem pílulas contendo 50 mg de resveratrol disponíveis no mercado (ver figura) mas, mesmo assim, ainda teríamos de tomar 30 delas por dia.
Mas, felizmente, la nave (della scienza) va… Em novembro passado, pesquisadores da empresa americana Sirtris Pharmaceuticals publicaram na Nature a identificação e caracterização de alguns compostos polifenólicos sintéticos mil vezes mais potentes que o resveratrol na ativação de SIRT1 em humanos. Esses compostos mostraram-se extremamente eficientes no controle metabólico de camundongos diabéticos. Certamente vale a pena ficar atento aos desenvolvimentos dessa área, porque várias benesses inevitavelmente virão.
Coda
Enquanto isto, tomemos o nosso vinho, tinto ou branco, não por causa de seus efeitos benéficos sobre a saúde, mas simplesmente pelo puro prazer de degustá-lo, como um elixir da boa vida. O que me lembra de uma frase que li em algum lugar: “A vida é curta demais para tomarmos maus vinhos!”
Para terminar esta coluna com chave de ouro, transcrevo aqui o “Soneto do Vinho” de Jorge Luis Borges (1899-1986), em seu original espanhol, que dá perfeitamente para entender:
Jorge Luis Borges (1899-1986), o bruxo de Buenos Aires, em foto de 1969 (foto: Pepe Fernández).
¿En qué reino, en qué siglo, bajo qué silenciosa
conjunción de los astros, en qué secreto día
que el mármol no ha salvado, surgió la valerosa
y singular idea de inventar la alegría?
Con otoños de oro la inventaron. El vino
fluye rojo a lo largo de las generaciones
como el río del tiempo y en el arduo camino
nos prodiga su música, su fuego y sus leones.
En la noche del júbilo o en la jornada adversa
exalta la alegría o mitiga el espanto
y el ditirambo nuevo que este día le canto
otrora lo cantaron el árabe y el persa.
Vino, enséñame el arte de ver mi propia historia
como si ésta ya fuera ceniza en la memória
*Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia – Universidade Federal de Minas Gerais
Fonte: Ciencia Hoje On-line, 08/02/2007. Disponível Aqui