Como seria olhar para um corpo humano sem vida com amor pois ele é uma parte extremamente íntima do que todos somos? Se pudéssemos expandir nossa definição de morte para englobar a vida, poderíamos vivenciá-la como parte da vida e, talvez, encarar a morte como outros sentimentos além do medo. Talvez uma das resposta aos desafios da longevidade seja olhar a vida social de cada morte. Isto nos ajudaria a reconhecer que o modo como limitamos a morte a algo médico ou biológico seja uma reflexão de uma grande cultura que compartilhamos, que é evitar a morte. Não se fala sobre a morte no ocidente. A vida não termina com a morte.
Kelli Swazey *
Desta forma os funerais são caracterizados por um elaborado ritual que amarra as pessoas em um sistema de dívida mútua baseada na quantidade de animais – porcos, galinhas e, mais importante, búfalos – que são sacrificados e distribuídos em nome do falecido. Assim, esta complexa cultura que cerca a morte, este pacto ritualístico do fim da vida, fez da morte a mais visível e memorável aspecto da paisagem de Toraja.
Durando poucos dias até algumas semanas, as cerimônias de funeral são um evento grandioso, onde comemorar a morte de alguém não é um evento de tristeza solitária mas muito mais uma compartilhada transição pública. E é uma transição que mostra muito da identidade dos que estão vivos assim como recordar a identidade do falecido.
Assim, todos os anos, milhares de visitantes vão até Tana Toraja para ver, com os próprios olhos, esta cultura da morte, e para muitos estas grandiosas cerimônias e o tempo destas cerimônias são de certa forma inconcebíveis para a forma como encaramos nossa mortalidade aqui no Oeste. Assim, mesmo vendo a morte como uma experiência universal, ela não é vivida da mesma forma em todo o mundo. Como antropóloga, eu vejo estas diferenças de vivências sendo enraizadas no mundo cultural e social pelos quais definimos os fenômenos que nos cercam.
Então, onde vemos uma realidade inquestionável, a morte como uma condição puramente biológica, o povo de Torajan vê a forma falecida do corpo como parte de uma gênesis social maior. De novo, a interrupção física da vida não é o mesmo que a morte. De fato, um membro da sociedade só está realmente morto quando sua extensão familiar pode aceitar isso e financiar os recursos necessários para uma cerimônia fúnebre que seja considerada apropriada em termos de recursos para o status do falecido. E esta cerimônia é realizada aos olhos de toda comunidade com a participação de todos.
Assim, após a morte física da pessoa, seu corpo é colocado em um quarto especial em uma tradicional residência, que é chamada “tongkonan”. E o “tongkonan” simbolicamente mostra não somente a identidade da família mas também a identidade da vida do falecido. Essencialmente, a forma da construção onde você nasceu é a mesma forma da estrutura que o carrega até o local de descanso de seus ancestrais. Até a cerimônia de funeral, que pode demorar até anos após a morte física da pessoa, o falecido é identificado como “to makala”, uma pessoa doente, ou “to mama”, uma pessoa que dorme, e continua sendo um membro da convivência familiar.
Mas, ao invés de ceder a este tipo de reação visceral que temos a este tipo de proximidade com corpos, proximidade com a morte, ou como esta noção de vivência não condiz com a realidade dentro da nossa definição de morte biológica e médica, eu gosto de pensar sobre o que no modo de encarar a morte do povo Toraja engloba mais sobre a experiência humana que a definição médica deixou de fora.
Eu vejo que o povo Toraja reconhece socialmente e expressa culturalmente o que muitos de nós sentem a respeito da aceitação comum da definição de morte biomédica, e que nosso relacionamento com outros humanos, seu impacto na nossa realidade social, não cessa com o fim do processo físico de seu corpo, e sim que ocorre um período de transição do relacionamento entre o vivo e o morto onde a mesma é transformada, mas não finalizada. O povo de Toraja expressa suas ideias deste relacionamento duradouro esbanjando amor e atenção utilizando do símbolo mais importante deste relacionamento, o corpo humano. Meu marido tem memórias afetivas de conversas e brincadeiras com a presença do seu falecido avô, e para ele não há nada de sobrenatural nisso. Esta é uma parte de um processo natural quando a família inicia o processo de transição do seu relacionamento com o falecido, e esta é uma transição de relacionamento com o falecido visto como uma pessoa viva para um relacionamento com um falecido visto como um ancestral. As efígies de madeira dos ancestrais, então, estas são pessoas que já foram enterradas, e já tiveram sua cerimônia de funeral. Estes são chamados de “tau tau”.
A essência da cerimônia de funeral engloba esta perspectiva de relacionamento com a morte. Ela ritualiza o impacto da morte nas famílias e comunidades. E também é um momento de auto análise. É um momento onde as pessoas pensam quem elas são, seu lugar na sociedade, e seu papel no ciclo da vida de acordo com a cosmologia de Toraja.
Existe um ditado em Toraja que diz que todas as pessoas se tornarão avós, e isto significa que depois da morte, todos nos tornamos parte da linha de ancestrais que nos liga entre o passado e presente e que definirá quem dos nossos entes queridos estarão no futuro. Essencialmente, todos nos tornamos avós da geração de crianças humanas que vêm após nossa geração. E esta metáfora sobre pertencimento na grande família humana é a forma como as crianças descrevem o motivo de investirem seu dinheiro nos búfalos que serão sacrificados que acreditam que carregarão as almas das pessoas daqui para a vida após a morte, e crianças explicarão que elas investirão o dinheiro nisto porque eles querem retribuir o débito criado por todos os anos de investimento e cuidado que seus pais tiveram com eles.
Todo esse foco na morte não quer dizer que o povo de Toraja não busque um ideal de vida longa. Eles se envolvem em muitas práticas que conferem boa saúde e sobrevivência até longa idade. Mas eles não fazem grandes esforços em prolongar a vida face a uma doença terminal ou em longeva idade. É dito em Toraja que todos possuem um tempo determinado de vida. Isto é chamado de “sunga”. É como uma troca, é permitida sua projeção ao seu fim natural.
Tendo a morte como parte da cultura e definição social da vida, as decisões das pessoas sobre sua saúde e cuidados são afetados. O patriarca materno do clã do meu marido, Nenet Katcha, está se aproximando da idade de 100 anos. E há sinais claros que ele está próximo de partir para sua jornada na “Puya”. Sua morte será enormemente lamentada. Mas sei que a família do meu marido já se prepara para este momento onde poderão mostrar ritualisticamente quanto sua presença memorável significou para a vida deles, quando poderão ritualisticamente recontar a narrativa de sua vida, tecendo sua história na história da comunidade. Sua história é a história de sua comunidade. Seus cantos de funeral cantarão a todos suas próprias histórias. E é uma história que não possui um início definido, e um fim imprevisível. É uma história que segue muito além do que seu corpo pudesse ir.
As pessoas me perguntam se sinto medo ou repulsa participando de uma cultura onde a manifestação física da morte nos encontra a cada passo. Mas eu vejo algo profundamente transformador em ver a morte como um processo social e não somente como um processo biológico. Na realidade, o relacionamento entre os vivos e falecidos tem seu próprio drama no sistema de saúde dos EUA, onde decisões sobre o quanto prolongar a vida de uma pessoa são feitas baseadas em nossos laços emocionais e sociais com as pessoas em nossa volta, e não só na habilidade da medicina de prolongar a vida. Nós, como o povo de Toraja, baseamos nossas decisões sobre a vida nos significados e definições que descrevem a morte.
Não estou sugerindo que alguém aqui na plateia deva mudar drasticamente e adotar as tradições do povo de Toraja. Pode ser ligeiramente difícil realizar isto nos EUA. Mas eu quero perguntar o que podemos ganhar vendo a morte física não só como um processo biológico mas como parte da história humana. Como seria olhar para um corpo humano sem vida com amor pois ele é uma parte extremamente íntima do que todos somos? Se pudéssemos expandir nossa definição de morte para englobar a vida, poderíamos vivenciar a morte como parte da vida e, talvez, encarar a morte como outros sentimentos além do medo.
* Kelli Swazey é antropóloga e tem pesquisado como a religião, espiritualidade e política definem a sociedade na Indonésia, onde ela viveu por mais de 10 anos. Atualmente ela é professora do Centro de Estudos Cross-Culturais e Religiosas na Universidade Gadjah Mada. Em sua pesquisa, Swazey analisou relações entre cristãos e muçulmanos em Sulawesi do Norte, documentado serviços religiosos indonésios na Nova Inglaterra e um interesse nas práticas funerárias em Tana Toraja, localizada no leste da Indonésia. Seu marido é um Torajan e Swazey ficou fascinada ao saber que ele tinha jogado com seu avô muito tempo depois dele morrer. Swazey também embarcou em uma excursão cultural incomum na Indonésia: ela está aprendendo a cantar uma canção de cada província. Esta fala foi dada no TEDMED 2013, traduzida por Leonardo Carvalho e revisada por Lorena Luna. Assista Aqui