Usuários ou espectadores do fim? - Portal do Envelhecimento e Longeviver
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Usuários ou espectadores do fim?

Usuários dos serviços públicos estão sujeitos a toda sorte de situações que dificultam o acesso, atendimento e acompanhamento, como se o serviço fosse um favor e não um direito.

Amanda dos Santos Lemos (*)


Certamente, você já se viu na condição de “usuário”. Usuário de sistemas de informática, usuário de redes sociais e serviços de streaming, usuários de transportes e serviços públicos. Dependentes químicos também são, popularmente, chamados de “usuários de drogas”. Muito embora a palavra usuário signifique, apenas, “aquele que usa algo ou normalmente usa algo (1)”, estar na condição de usuário, geralmente, nos causa aflição.

Lembre-se da última vez que você tentou falar com a operadora do seu telefone celular. A questão é que mesmo o usuário sendo o indivíduo que comumente use determinado bem ou serviço, facilmente, é possível observar que quando estamos nessa condição somos tratados coletivamente, ignora-se nossa individualidade e preferências, nossas urgências. Nos tornamos um aglomerado de indivíduos sem personalidade, historicidade ou identidade. Ponto que nos traz a essa reflexão.

Tomar o usuário ou a população usuária como um todo, é um erro. Pensar respostas e soluções coletivas, a partir de um caso ou de uma amostragem é um equívoco. Coletivamente, sim, podemos ser usuários, individualmente, somos sujeitos históricos, com necessidades diferentes – mesmo que possam ser parecidas –, idades diferentes, gêneros diferentes, conhecimentos e aspirações diferentes e, quando você se torna usuário essas particularidades desaparecem, você se torna um, entre tantos outros usuários de algo. Pensemos, por exemplo, na população usuária dos serviços de saúde pública.

Pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos em Saúde Suplementar, em 2020, aponta que apenas 14% da população maior de 60 anos no Brasil possui plano de saúde, integrando os 22% (total) da população brasileira que possui assistência médica complementar privada. A pesquisa aponta ainda que essas pessoas idosas são de classe média alta e estão majoritariamente no eixo Rio de Janeiro e São Paulo(2). Em outras palavras, 86% da população maior de 60 anos no Brasil depende exclusivamente dos equipamentos públicos de saúde para cuidarem da mesma.

Mesmo o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro sendo um dos mais avançados do mundo, no que se refere aos seus princípios de gratuidade e universalidade sobre os serviços oferecidos, ser usuário do mesmo, especialmente quando se é velho, não é nada fácil. Disso todos sabemos. Não é fácil, quiçá possível, usar regularmente os serviços públicos de saúde.

Os usuários destes serviços estão sujeitos a toda sorte de situações que dificultam o acesso ao atendimento e ao acompanhamento integral da saúde. São constantes situações de humilhações, constrangimentos, negativas e escassez de recursos, como se o serviço fosse um favor. Esse cenário se torna mais desolador quando se trata de um usuário trabalhador, envelhecido e periférico, já intensamente castigado pelas contradições que atravessam nossa sociedade. É desolador.

Ser usuário dos serviços de saúde é como concorrer a um concurso da loteria federal, é preciso ter sorte e perseverança, mas, nesse caso, o prêmio será uma assistência digna e o tratamento de sua saúde. A questão é que em se tratando de saúde, não há tempo, o tempo pode determinar a continuidade ou a interrupção da vida. Agora, pensem em uma pessoa idosa disputando essa loteria? Não há tempo, não há tempo para perseverar, para peregrinar de porta em porta, para esperar. Um paradoxo, pois, isso fere tudo o que é preconizado e estabelecido pelo SUS e pelo Estatuto do Idoso (Lei No. 10.741, de 1º de out. de 2003), legislações que resguardam direitos e que privilegiam pessoas envelhecidas.

Não sei se é possível imprimir um atendimento humanizado e acolhedor para os “usuários”, nesses serviços automatizados de telemarketing, como o da operadora de planos de saúde, por exemplo, mas, é urgente que se pense as opções para os serviços públicos, serviços prestados por gente para gente. Pensando bem, não é necessário elaborar alternativas para tornar o ambiente hospitalar, na saúde pública, mais humanizado e acolhedor para os seus usuários. Em 2003 o governo federal lançou a Política Nacional de Humanização (PNH) ou HumanizaSUS, com o objetivo de “pôr em prática os princípios do SUS no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mudanças nos modos de gerir e cuidar”(3).

É preciso, apenas, vontade política e institucional para efetivar o que está disposto na legislação, para que “usuários” sejam percebidos e tratados como sujeitos históricos e individuais, humanos que são. Além dessa dose de boa vontade é preciso disponibilizar recursos financeiros, materiais e humanos, investir em gestão e capacitação das equipes, especialmente, no que diz respeito às especificidades do envelhecimento humano.

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A população brasileira está envelhecida, isso é um fato, porém, nossas instituições não acompanharam esse processo e não estão preparadas para atender a esses “usuários”. Atender a pessoa idosa não é apenas estabelecer a prioridade na ordem de atendimento ou disponibilizar assentos preferenciais, o atendimento a pessoa idosa é complexo e, não se deve perder de vista suas individualidades, sua história de vida. Não há como tanta história e tanto de tempo de vida caber na figura generalista do usuário, de a pessoa idosa ser tratada como um todo. Se for para tratar a pessoa idosa como usuária, que lhes seja então concedido o lugar de usuário experiente – usando uma linguagem digital – que é seu por direito.

Não é fácil ser usuário…

Notas
(1) Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
(2) Dados disponíveis em: https://www.ufsm.br/midias/experimental/agencia-da-hora/2021/09/01/maioria-dos-idosos-nao-tem-plano-de-saude-e-depende-unicamente-do-sus/.
(3) Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_humanizacao_pnh_folheto.pdf.

(*) Amanda dos Santos Lemos – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, da FGV/CPDOC; Mestre em Serviço Social e Bacharel em Serviço Social. Possui experiência com acolhimento institucional de pessoas idosas, gestão de políticas sociais e gerenciamento de equipes. Pesquisadora selecionada do Edital Acadêmico de Pesquisa 2021 com o tema “A mobilidade urbana e os entroncamentos da vida: Os rebatimentos dos deslocamentos feitos por trabalhadoras domésticas, em grandes centros urbanos, no processo de envelhecimento e na vivência da velhice”, dentro da linha de pesquisa Segurança de acesso a bens e serviços. E-mail: amandadosslemos@gmail.com.

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Foto destaque de Mauricio Mascaro/Pexels


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