O caldo escuro do cozimento das carnes, cabeça de bode partida, coração, língua e fígado misturados ao sangue é jogado sobre o cuscuz no prato. Talvez uma quase bacia de alumínio. Polido e ariado, ao ponto de “virar” um sol com as múltiplas claraboias que jogavam luz para todos os lados. Um copo, “na risca” (marca superior dos copos americanos), de cachaça “Verdinha”, saída dos alambiques do Seu Arthur.
Alcides Freire Melo. Texto e Fotos *
O sangue grosso, morto, escorre com dificuldades por entre os dentes, bocas e narinas dos animais recém-abatidos a facas e machados. Formam compridos filetes, tocam o chão. Os cães chegam rápidos. Outra briga. Agora, disputam estas gotas de sangue já escuras, que brilham formando pequenas poças. Ferozes, magrelos, os cães fincavam os dentes, estraçalhavam as orelhas uns dos outros. Aos pontapés, os vendedores apartam mais uma briga. Aos ganidos, os cães recuam e se contorcem.
Retornam silenciosos, línguas pendentes. Selvagens e cautelosos, os machos “dispensam” o cio da cadela que entra também na igual disputa por ossos, peles e gorduras. Com a lembrança de fortes chicotadas de relho cru, guardadas em cicatrizes nos lombos pelados dos cães, nenhuma carne era abocanhada, roubada. Sequer cheirada. O entrelaçado de pés e pernas, do vai e vem dos feirantes e compradores afasta a cachorrada. De longe, aguardam o arremesso das sobras dos cortes das carnes. Troca de olhares rosnados e mostra de afiados caninos, prologavam o intervalo de paz nesta matilha.
O caldo escuro do cozimento das carnes, cabeça de bode partida, coração, língua e fígado misturados ao sangue é jogado sobre o cuscuz no prato. Talvez uma quase bacia de alumínio. Polido e ariado, ao ponto de “virar” um sol com as múltiplas claraboias que jogavam luz para todos os lados. Um copo, “na risca” (marca superior dos copos americanos), de cachaça “Verdinha”, saída dos alambiques do Seu Arthur. “Única do mundo com a cor verde”, aguardava para encorajar os bebedores matinais. “Para abrir o apetite”, bendiziam.
A feira corria de um lado ao outro em grande velocidade. Jumento com os caçuás carregados de frutas chegavam com as narinas dilatadas. É o peso que sobra e a subida que maltrata. Carriolas de madeira carregadas de mangas-rosa marcavam as mãos dos vendedores e amoleciam as pernas. Banquinhas vendiam pé-de-moleque, bolo de araruta, beijus, canjicas, pamonhas e cafés, complementavam as principais guloseimas do cardápio da feira. Frutas ficavam espalhadas pelo chão acolchoado por esteiras de carnaúbas.
De longe, perto dos cantadores e poetas, Abelardo esperava todos os sábados a chegada da Maria só para vê-la comprar pé-de-moleque, broa e tapioca. Eram as pernas que mais provocavam; morenas pernas. Também as curvas sinuosas, que marcavam todo o vestido deixando voltas e pontos arredondados. Por desejar, parecia ser um vestido curto, leve e colorido. Nem era; infelizmente. As pequenas margaridas soltas para estamparem o tecido, invadiam os sonhos, criavam cenários que começavam a despertar e crescerem na adolescência ainda de poucos sabores provados.
Tudo permanecia em silêncio e em segredo até mesmo ao confessionário da igreja. Os desejos que vagavam de todas as formas e maneiras por todo o corpo, incomodavam em noites também adolescentes, que teimavam em ficar adultas para se libertarem desta solidão. Piorava ainda mais quando, à noite, dançavam os dois, colados, bem colados. Sempre em silêncio, trocando suor dos rostos, no apertado salão quando dançavam na tertúlia de radiola. Maria falava com o corpo, somente com ele que acendia por ser adolescente também. Sentimentos nunca compartilhados entre eles.
À tardinha, restava pouco mais que o vazio. O vento sacudia o que sobrara e ainda embalava os bêbados que rodopiavam sobre os pés, até lugar algum. Calavam-se o triângulo e a zabumba dos cantadores. Jumentos em disparada disputavam com força e coices uma posição para preservar a espécie. Os bares impregnados de álcool e fumaça de cigarro baixavam às portas às 17h30min, antecipando a ordem do sino da igreja que tocava às dezoito horas e, desde as dezessete, já ensaiava o cantochão.
Os comerciantes de bijuterias, perfumes e colônias já haviam perfumado todas as idades com diferentes fragrâncias. Fortes, estes aromas demoravam a sair do ar, principalmente quando encontravam com outros diferentes, iguais. Trocavam de corpos. As brilhantinas fixavam os cabelos masculinos, desafiando os mais fortes dos ventos. Deste modo, tão simples, mudavam-se os sentimentos das pessoas que procuravam a última missa do domingo ou somente uma cadeira nas calçadas para conversas informais. E debitar a vida por mais um dia.
* Alcides Freire Melo – Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: alcidesfreiremelo@gmail.com.