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Uma casa que perdeu o futuro

Coincidindo com a inauguração do maior conjunto arquitetônico moderno do Brasil, a Brasília de Niemeyer, ficava pronta também, em 1960, a mais bela de todas as casas que conheci, construída na cidade de Monsenhor Tabosa, interior do Ceará. Embalados pelo sorriso de felicidades da mãe, principalmente e, a vitória do pai, os filhos ajudavam com a mudança. Três deles corriam soltos pelas ruas com as últimas peças, rumo à casa nova. A filha mais nova, de um ano, no colo da mãe.

Alcides Freire Melo *

 

O rádio Semp, um dos principais bens, era levado pelo pai. Na sala, sintonizado na rádio Tupinambá, de Sobral, Luiz Gonzaga com sua Asa Branca concertava com os gritos e risadas dos meninos na casa. Os móveis dançavam a procura de um lugar melhor. Os cheiros da tinta fresca e o cedro das portas eram a garantia de um sonho que virava realidade. Da cozinha, o capão na panela de ferro, convidava para o primeiro almoço.

Panos molhados corriam de um lado ao outro para retirar o pó do piso e receber a primeira camada de cera de carnaúba, diluída em querosene, para fazer brilhar o mosaico hidráulico, com desenhos e formas que provocavam a criatividade de todos. Lençóis brancos, bordados a mão, engomados com grude e ferro de brasas, clareavam as camas e convidavam para bons sonhos. Na sala, a geladeira a querosene, uma das únicas da cidade, garantia gelo e água gelada.

No começo da noite, hora que o velho motor do gerador da cidade era ligado para acender as luzes amareladas, a vitrola valvulada, com picape automática, começava a tocar. Apareciam os mais brasileiros de todos da década de 1950. A Normalista, com Nelson Gonçalves, adiantava o passado para ficar presente. Às 22 horas, desligada a energia, os faróis e o lampião também a querosene terminavam a noite.

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O mês de junho começava a mudar o clima da serra. As temperaturas baixavam e, bem cedo da manhã, o denso nevoeiro destorcia as formas, limitava a visão, expandia a preguiça e motivava as brincadeiras com piões de goiabeira e futebol. No quintal, a cisterna – reservatório para armazenar água da chuva – cheia, garantia o abastecimento de toda a família com água potável durante ano.

Do jardim, visão privilegiada para contemplar de longe o grupo escolar de paredes amarelas, que desafiava e desenhava as primeiras passagens para outros mundos. Brotavam as roseiras e a palmeira fênix soltava novas folhas. No cercadinho do quintal, uma vaca para garantir leite de qualidade para todos. Primeiros caprichos de quem emprestou a alma para dar vida àquelas paredes, portas, cozinha e a família.

Aos domingos, pequenos produtores e seus jumentos, com caçuás carregados de frutas, verduras e legumes, subiam, enfileirados, a ladeira do Luiz Pedreiro para vender na feira a produção da semana. Outros, transportavam em carrinhos de mão feitos de madeira. As rodas rangiam, como o do Zé Donana, com goma branca e fresca. O do seu Fransquim, com farinha e rapaduras da serra; Beatonho, o mais apressado, lapeava os calcanhares com as sandálias na subida da ladeira com o carro perfumado de tanto pé de moleque, embrulhado em folhas de bananeira. Orgulhava-se de encabeçar a “procissão”. Em ritmo mais lento, aparece no final da fila, seu Chico Lucas, com a preciosa carga de bananas maçãs, forradas com algodão para não machucar. Aos gritos dos vendedores, conversas dos compradores e rinchos dos jumentos, a feira, por fim, está montada.

Às 6h30min toca o sino da igreja. É a última chamada para missa, a missa das sete horas. O sino tem a magia e o poder de parar a feira. E para fiéis, beatas, comerciantes e feirantes. Poucos resistem ao chamado. As viúvas com lutos para toda a vida e o rosto coberto com véus, terço e missal nas mãos chegam rápidas à igreja. São as primeiras a ocupar as filas de bancos próximos ao altar da igreja de São Sebastião. Até começar a missa, meninos correm e falam alto dentro do templo. Pecados são confessados e perdoados. Abençoados todos, ao final da missa, a cidade retoma seu ritmo: vende sua feira, abre os bares e as conversas viram fofocas, discussões, insultos e brigas não raras acontecem no Barracão da Feira. Briga também de cachorros por peles e pedaços de ossos jogados pelos marchantes. A molecagem “berra” imitando o bode em provocação aos compradores de fussura.

Com o passar de alguns poucos anos, a ladeira e a “procissão” foram diminuindo, perderam força e o encantamento. A feira juntamente com a cidade também ficaram menores e o sino da igreja quando tocava, como fazia pontualmente todos os domingos, não conseguia tanger mais tantos fiéis. Agora percebemos que a igreja era pequena, de apenas uma torre. A fé encolhera também.

A necessidade exigia a venda da casa. Era o ano de 1966. Negociada e, por nunca ter sido de toda paga, quando vendida, hoje vive solitária e abriga apenas uma alma com a obrigação de ocupar todos os compartimentos, ligar a vitrola, encher a cisterna, cuidar do jardim e ficar debruçado no tempo que nunca passou e ainda ser obrigado a ficar ouvindo carrinhos de madeira e vendedores fantasmas subirem a ladeira. Pior ainda é conviver com os sonhos que ficaram apreendidos nos quartos, sala, área, jardim…

* Alcides Freire Melo – Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. E-mail: alcidesfreiremelo@gmail.com

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