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Uma carta à paixão

Conseguiu esconder e proteger, descuidadamente, o registro de uma paixão; uma história que nunca acabou. Ela sempre esteve comigo, todos estes quase 14 mil dias. Não por egoísmo “obriguei” a caixa a ficar por trinta e oito anos no fundo do guarda-roupa. É uma parte da minha vida, somente minha que sobrou e foi aprisionada.

 

Hoje, um ano depois de ler a tua carta publicada no Portal, resolvi abrir uma caixa com poucos objetos de uma mudança. Havia anos trancados. Ela protegia, escondia restos de um passado e fingia guardar um segredo. Conseguiu esconder e proteger, descuidadamente, o registro de uma história; uma história que nunca acabou. Ela sempre esteve comigo, todos estes quase 14 mil dias. Não por egoísmo “obriguei” a caixa a ficar por trinta e oito anos no fundo do guarda-roupa. É uma parte da minha vida, somente minha que sobrou e foi aprisionada.

Talvez, por medo de deixar “escapar” algum dos dois personagens, objetos ou sentimentos que fizeram parte de um conto, uma vida, a caixa aterrorizou por todos estes anos. Ninguém ousou abri-la. Nenhuma palavra saiu, nem o mais insignificante dos objetos. Nada “obrigava” a abertura dela. O vazio do nosso “primeiro” dia quando nos separamos foi a maior proteção a tudo que a caixa segredou.

O relato de quem viveu, mesmo por pouco tempo, a condição de uma paixão, obrigou a ansiedade a seguir-me até o momento, quando decidi pela postagem. Não tinha certeza se encontraria teu endereço, mas eu precisava livrar-me desta história que nunca esteve no passado, nunca; nem trancada em lugar algum. Por mais de trinta anos eles, os personagens, viajaram comigo, divertiram-se, beberam por noites, dias, fingiram beijar e “amar” outros. Hoje meu endereço é outro, outra cidade, outro estado. Propositadamente não atualizei; não a quero mais de volta.

Acredito que a casa, onde brincamos de ser gente grande, não exista mais. Logo, minhas, nossas palavras, ficarão perdidas, talvez para sempre trancadas em depósitos ou abandonadas em alguma caixa de correspondências. Existindo, ela entre e, por meio de todos os teus sentidos, recobre a memória, viva e liberte tudo o que ficou e se tornou prisioneiro daquelas paredes amarelas. Pior, poderá também se tornar outra vez prisioneira e permaneça para sempre vigiada pela louca, irresponsável e solitária da energia que criamos e deixamos. E o nome desta energia infinita é paixão.

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Fortaleza, 04 de setembro de 1980.

– Quero falar de uma paixão. De uma que vivi sem a necessidade de precisar saber o que é amar. A ti, principalmente. Sobre a paixão, o desejo que tenho, sinto por ti e, certamente, levarei comigo a cada dia da minha vida. É assim desde que nos conhecemos, e será assim, sempre. Nunca houve dimensão, regras. Paris, Veneza e vinhos iniciavam desejos, destinos, quando nos silenciávamos e íamos ao futuro. Após o primeiro segundo que nos separamos, surgiu um vazio para reger minha vida, corrosivo, e transformou em maldita, a paixão, pronta para a desordem espiritual e sugeriu criar regras, exigências onde mais nada cabia. Associada aos sonhos e desejos acendem-se todas as esperanças em voltar a ti tocar, renasce o romantismo surrealista dentro do imaginário.

Não sei bem contabilizar, mensurar todos os transtornos e mudanças que a ausência, o nada, fizeram à minha vida. Preciso expressar este sentimento, controlar, anular este desejo e, pela última vez, prometo, não, não prometo. Quero falar de desejos outra vez, de perto, com a minha boca colada na tua e, de forma concreta, sem poesia, a maneira da virtude e desejo corporal. Depois, sentir teu calor e perceber que nenhuma palavra foi pronunciada. Não existem mais palavras. Construiremos o silêncio. Desde ontem, nada mais poderá ser dito, nunca mais.

Somente os sussurros e o silêncio, desta última hora, talvez, para me acompanharem ao meu infinito. Para poder ainda explodir em estrelas por todo o teu corpo; uma fusão celular. Te quero, desejo teu corpo, tua sensata loucura; tua perversidade com as regras, nossas palavras sem sentidos, o silêncio e a tua falta de lógica: a minha. Necessito ficar perto de ti para sentir teu corpo, perceber e tocar tuas marcas, linhas, relevos. Contrariar leis, regras, “quebrar” nossos acordos e sentimentos. Assim, a tempo, voltarei ao vazio, ao condicional, sereno e previsível amor.

Criei regras para poder dividir e suportar o meu descontrole, minha ansiedade. Entregar todo o resto de tempo que não tenho, mais controle a quem sabe controlar minhas sobras, a quem suporta a previsibilidade, um amor. Estes para viver em noites dias iguais aos que amanhecem perderam a referência do mais, do menos, descontrolei-me. Desenhei um mapa do meu mundo, coloquei várias garrafas de um bom vinho para uma única noite com milhares de outras dentro dela e, em todas elas, em cada uma delas, poder te abraçar. Esperar meu peito, teu peito suar, contar aceleradas batidas de corações, perceber descompassos de um coração bem louco e, irresponsavelmente, feliz.

Os aromas. Estes ficarão gravados em todos os meus cinco sentidos, na minha inocência estagnada, na minha fé, crenças. Na eternidade e no infinito que um dia acertamos chegar a ele. Não foi eterno, mesmo assim, sei exatamente onde e como é o infinito, onde o tempo não acaba. Mesmo assim, dizer que não sobrevivemos. O infinito estava exatamente nesta nossa pouca idade para suportar tanta paixão. Não suportamos.

Perdemos. Acabamos com a lógica irracional da paixão que “inventamos”. Nossas formas, fórmulas e sabores não serviram como referências e aprendizados ao amor. Lá, tudo é diferente. A lógica, a serenidade e a razão mandaram-me em busca de um amor irresistível que viverá para sempre. Preciso somente o tempo necessário, pouco, talvez baste, para que o melhor dos vinhos ganhe novo buquê na tua boca, e as primeiras que chegarem com o sol para desejar te encontrar, tua alma e teu corpo, na próxima encarnação. Todas descontroladamente apaixonadas.

Não deveríamos ter nos separado. Este foi espiritual. Gigantescos danos carnais formaram-se por todos estes dias de ausências, solidão desnecessária e suficiente para afastar todas as possibilidades de uma reconstrução. Mesmo assim, nada poderá fazer levar-me ao encontro do que não mais existe. Gastamos tudo em noites curtas de longas realizações. De sonetos inventados, contos. Ajoelhei-me diante de todas as ausências, faltas e desilusões. Orei a finitude, decapitei sonhos e possibilidades. O caos e os degredos socializaram-se e uniram-se a objetivos. Agora, é viver “um grande amor”.

Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: alcidesfreiremelo@gmail.com

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