Quando dizemos que arte é atemporal e possui a sutil possibilidade de quebrar barreiras e favorecer novas experiências, estamos aceitando olhar para novos horizontes e experimentar novas possibilidades de comunicação. No caso das canções, o jogo de palavras e intonação colocada na voz ao se cantar pode ser muito interessante.
Rafael Ludovico Moreira(*)
1 2
Compra-se seres humanos Compra-se seres humanos
Calados, Domesticados Que sejam modernizados
Que não pensem nem opinem Que andem sempre na moda
Ao serem questionados Felizes, Etiquetados
Que não pensem, nem escutem Que propaguem e que convençam
Nem sintam-se incomodados. Até os conscientizados.
3 4
Compra-se seres humanos Compra-se seres humanos
Totalmente desligados Famintos, desempregados
Que não gostem de política Indecisos, inseguros
E estejam sempre ocupados Descalços, descamisados
Que não sejam de esquerda Menores, analfabetos
E nem sindicalizados. E até informatizados
5
Compra-se seres humanos
Idosos, aposentados
Jovens e adolescentes
De preferência os drogados
Que sumam-se, consumindo
Em tempos globalizados
Compra-se – Professor Zé Maria
Eldorado dos Carajás – PA – por carta
Estamos vivendo momentos difíceis, a partir do texto acima podemos observar que alguns dos valores construídos pouco a pouco em castelos de areia, mas que de certa forma ainda conseguiam se manter ruíram. Penso que algumas das dificuldades que estamos passando são reflexo de momentos vividos anteriormente. Mas como escrever a dor de um tempo que não vivi? Como significar momentos a partir de sons que não ouvi?
Jung (1980) diz que “ a psique do indivíduo está longe de ser seguramente unificada. Ao contrário, ameaça fragmentar-se muito facilmente sob o assalto de emoções incontidas.” ele também fala em seu trabalho sobre possuirmos um inconsciente coletivo, que segundo ele é uma herança psicológica que se soma a biológica e que ajudam a definir nossa personalidade.
Quando dizemos que arte é atemporal e possui a sutil possibilidade de quebrar barreiras e favorecer novas experiências, estamos aceitando olhar para novos horizontes e experimentar novas possibilidades de comunicação.
No caso das canções, o jogo de palavras e intonação colocada na voz ao se cantar pode ser muito interessante. Por exemplo ao falarmos sobre canções de protesto podemos encontrar algumas canções como:
Pelos campos há fome Em grandes plantações Pelas ruas marchando Indecisos cordões Ainda fazem da flor Seu mais forte refrão E acreditam nas flores Vencendo o canhão(Pra não dizer que não falei das flores – G. Vandrè – 1968) |
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir E pelo grito demente que nos ajuda a fugir Deus lhe pague(Deus lhe pague – Chico Buarque – 1971) |
Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer do meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça (Cálice – Chico Buarque – 1973) |
A partir das letras, nesse caso é fácil identificar o “tom” (por assim dizer) de revolta que as elas possuem, no entanto os acordes dissonantes de Chico Buarque e a calma melodia de Vandrè se encarregam de expressar o que resta.
Podemos observar que o planeta possui uma paisagem sonora, um composto de sons e ruídos que caracterizam e demarcam os espaços. Esses sons, conforme a passagem dos anos se altera, muda, se mescla e novos sons surgem. Possibilitando novas configurações sonoras. Apesar dessas novas configurações, os sons antigos, os mais primitivos continuam marcados em nosso inconsciente e podem ser acessados a qualquer momento. Murray Schafer (1992) aborda paisagem sonora:
E aqui, no centro de tudo, como uma viola no final de um allegro para trompete e tambor, estão os sons de nossas próprias vozes. Não faz muito tempo, cantávamos nas ruas da cidade, mesmo fala é frequentemente um esforço violento. O que deveria ser o mais vital som da existência humana está pouco a pouco sendo pulverizado sob sons que podemos chamar, muito acuradamente, de “não humanos”. Partes da sinfonia mundial que já foram tocadas e não serão repetidas: a máquina a vapor, a carruagem puxadas por cavalos, o barulho do açoite (que Schopenhauer achava tão agoniante), A lâmpada de óleo de carvão. Sim, como soava a lâmpada de óleo de carvão? Você pensará em outros sons. […] Haverá ainda movimentos em pianíssimo? Haverá logo uma sessão em adágio
Por mais que a sociedade busque calar a humanidade em atos covardes e desumanos, sempre possuiremos maneiras de gritar. A arte, presente desde os primórdios de nossa espécie possibilita diversas maneiras de expressão e por conseguinte, de protesto.
Referências
JUNG C. G. Psicologia do Inconsciente, Rio de Janeiro, Ed Vozes. 1980
SCHAFER, M. O Ouvido Pensante, São Paulo, Ed. Unesp. 1991
(*) Rafael Ludovico Moreira é Musicoterapeuta, mestrando em Gerontologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e colaborador do Portal do Envelhecimento. Texto publicado originalmente no Blog do Centro-dia Angels4u