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Travessia

Em uma determinada ocasião da minha carreira, percebi que havia chegado o momento de colocar em prática o que havia aprendido. Tempo da travessia.

Ruth Maria Cruz Vaz (*)


Comecei minha jornada sobre o envelhecimento ainda na década de 90, por volta dos trinta e cinco anos. Naquele tempo queria muito implantar um programa de preparação para a aposentadoria em um órgão do Poder Judiciário Federal. Busquei conhecer pessoas que estavam vivenciando essa fase para entender mais sobre a temática nos seus diversos aspectos. Para tanto, me inscrevi em um curso promovido, à época, pelo Núcleo da Terceira Idade na Universidade de Brasília.

O curso foi um divisor de águas, pois passei a ouvir com o coração os preciosos relatos dos participantes, não apenas sobre a aposentadoria, mas sobre o envelhecer. Foi exatamente ali que nasceu a minha paixão pela área e comecei a refinar a minha escuta e a minha visão sobre o ciclo da vida.

Essa experiência contribuiu para a implantação de um programa, não direcionado à preparação para a aposentadoria, mas voltado aos servidores já aposentados. Criou-se um espaço de fala e de escuta desse público, a partir de encontros grupais.

A convivência com os servidores aposentados foi um dos elementos motivadores para a busca de conhecimentos e também a base para o desenvolvimento de trabalhos sobre Qualidade de Vida e sobre a importância da educação para a aposentadoria, durante a minha jornada laboral no serviço público. Entretanto, em uma determinada ocasião da minha carreira, percebi que havia chegado o momento de colocar em prática tudo o que eu havia aprendido e me dedicar à construção do meu projeto de vida.

O poema de autoria de Fernando Teixeira de Andrade, embora popularmente atribuído a Fernando Pessoa, representa um pouco do que estava vivendo:

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”

Eu não queria esquecer os caminhos que me levaram aos mesmos lugares, pois cada um deles contribuiu para o meu desenvolvimento pessoal e profissional, a ser quem eu sou.

Entretanto, eu precisava ousar, precisava fazer a travessia para a minha aposentadoria e isso não foi e nem é exatamente uma tarefa fácil, pois envolve mudanças, transformações, perdas e ganhos. Envolve ainda, saber lidar com sentimentos e emoções às vezes tão antagônicas, com coisas que nem imaginamos que nos impactam, mas que de repente surgem com uma nova roupagem.

Fiz a minha opção pela aposentadoria e também vivenciei momentos de dúvidas e de inquietações, apesar da experiência na área. Foi necessário fazer o meu planejamento, pois havia chegado o momento de transformar os saberes que foram acumulados com o passar dos anos em ações práticas. Foi preciso mergulhar no autoconhecimento, para que eu pudesse enxergar o cenário de forma ampla e fazer as escolhas necessárias. Percebi que não ficaria feliz se não tivesse uma outra ocupação, então decidi desengavetar um sonho antigo e voltei para a faculdade aos 50 anos para cursar psicologia.

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Trabalhar, estudar, lidar com vários papéis ao mesmo tempo foi desafiador! Em 2018 me aposentei após 36 anos de trabalho. Desde então, tenho me dedicado a atividades voltadas à minha saúde e bem-estar, aos estudos, principalmente relacionados ao processo de envelhecimento e suas várias interfaces, assim como à prática clínica, na qual também desenvolvo atendimentos relacionados à aposentadoria.

A partir da minha vivência pessoal criei uma metodologia, o Plano de Desenvolvimento para a Aposentadoria – PDA, com o objetivo tanto de ajudar as pessoas a realizar a sua transição para a aposentadoria, como àqueles que já se encontram aposentados. O PDA é uma ferramenta que possibilita ao indivíduo planejar ações práticas, a curto, médio e longo prazos, nas diferentes dimensões da sua vida, por meio de estratégias personalizadas.

Esse plano é dinâmico e pode e deve ser revisitado periodicamente de acordo com a necessidade de cada pessoa. Essa ferramenta tem sido aprimorada constantemente, a partir dos conhecimentos adquiridos, por meio de cursos, eventos e observações.

Recentemente realizei o curso Fragilidades: o envelhecimento sob a perspectiva da gerontologia social, pelo Portal do Envelhecimento, concomitante ao curso de Formação em Psicogerontologia pela UFMG. Quero destacar que o rico conteúdo ministrado por ambas instituições atua como uma bússola para a minha vida e para o meu trabalho. Ao transpor a teoria para o meu dia a dia, consigo também entender melhor as minhas dificuldades e restrições no meu próprio envelhecer. Isso me impulsiona a buscar novas rotas na minha jornada.

Se por um lado eu me sinto privilegiada, principalmente pelo acesso que tenho a inúmeras informações, por outro fico extremamente incomodada ao perceber que a velhice ainda é ignorada e estereotipada em muitos contextos. Essa temática geralmente não está incluída nos programas voltados à aposentadoria ou se encontra de uma forma muito superficial. Entretanto, envelhecer é um privilégio da própria existência e saber lidar com as mudanças significativas nas várias dimensões é algo primordial.

Para isso também é fundamental que tenhamos investimentos em políticas públicas com ações práticas e precisas. A pessoa idosa deve ser contemplada na sua complexidade, não apenas no aspecto físico, mas também no sociocultural, econômico e psicológico. E as equipes que atuam com esse público necessitam de capacitação constante, para que possam entender as particularidades das várias velhices.

Acredito que o grande desafio da nossa práxis profissional seja atuar na otimização dos aspectos protetivos e na conscientização dos fatores de risco, dentro das diversas dimensões que envolvem o envelhecer. Afinal, todo cidadão, independente do seu status social, merece vivenciar a sua velhice com dignidade e respeito!

(*) Ruth Maria Cruz Vaz é administradora e psicóloga com pós-graduação lato sensu em Psicodinâmica e Clínica do trabalho (UNB); Planejamento e Administração de RH (ICAT/ UDF) Educação e Promoção de Saúde (UNB); Formação em: Orientação Profissional e a Carreira (Instituto SER); Terapia Cognitivo-Comportamental (Psicoeducar). Texto escrito no curso “Fragilidades: o envelhecimento sob a perspectiva da gerontologia social”, promovido pelo Espaço Longeviver/Portal do Envelhecimento, no segundo semestre de 2022. E-mail: rut.mvaz@gmail.com.

Foto destaque de cottonbro studio/pexels


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