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São Paulo – 466 anos! Minha Cidade!

Tentamos mostrar a cidade através da fala de seus moradores, um universo restrito, sabemos, mas rico em significados e pistas para sua compreensão. Complexas demais, a cidade e a vida se deixam apenas entrever como uma possibilidade em cada um desses relatos.


Nasci em São Paulo no ano de 1948, no bairro de Pinheiros, na Rua Henrique Schumann. Nela passei minha infância e juventude. Era uma rua sinuosa de terra batida onde brincávamos descuidados: descer a ladeira (muito inclinada para nós) de carrinho de rolimã, jogar bola de gude na calçada, brincar entre os muros e quintais e, mais tarde, descer a rua de bicicleta, em direção ao cruzamento das avenidas Rebouças e Brasil, soltando as mãos! Grandes aventuras para uma criança! No início dos anos 1970 um lado inteiro da rua teve suas casas desapropriadas para construção da avenida que hoje muitos conhecem.

Estudei na escola pública do bairro – Grupo Escolar Godofredo Furtado e no ginásio do Estado Prof. Antônio Alves Cruz, na Rua João Moura. Frequentava a igreja do Calvário, na Cardeal Arcoverde, onde fiz a ‘primeira comunhão’. Este foi durante 21 anos meu espaço de vida!

Aos 16 anos meu horizonte se expandiu, pois fui cursar a antiga Escola Normal Caetano de Campos, na Praça da República. Vivíamos a cidade sem medo. Circulávamos livremente de ônibus, íamos ao cinema ou fazer compras. O centro de São Paulo era território livre!

Este foi o período de início de namoro e eu, e mais algumas colegas, ficávamos esperando os namorados na janela da sala de aula do lindo edifício construído pelo renomado arquiteto Ramos de Azevedo. Era o momento de ir até a confeitaria Dulca, na Rua Vieira de Carvalho, passear pela Sete de Abril, frequentar a galeria de arte de Emi Bonfin, na av. São Luiz e entrar nas muitas livrarias e sonhar com os livros que queríamos ler, mas não podíamos comprar! Neste período a região no entorno da Santa Casa de São Paulo começou a fazer parte da minha vida na cidade, pois o namorado – marido há 50 anos! – lá estudava Medicina.

Em 1969 a Cidade Universitária – ainda quase deserta – abre novo espaço de vida com meu ingresso na graduação em Ciências Sociais e depois em Pedagogia. Poucos cursos tinham sido transferidos para lá, era muito descampado, havia poucos ônibus… Outras aventuras!

Assim, nasci, estudei, trabalhei, casei e constitui família nesta cidade diversa que vi se transformar na metrópole que é hoje! Ela é meu chão!

A cidade de São Paulo apresenta todos os contrastes – é multirracial, superpopulosa, extensa, intensa e desigual – meu espaço de vida e trabalho. Ela nos oferece suas múltiplas faces, nos indaga e desafia. Na sua multidiversidade acolhe imigrantes de todos os países e migrantes internos – um ‘caldo de culturas’ – que acolhe, mas também afasta e, como nenhuma outra, espelha a desigualdade deste imenso país.

Depois de trabalhar, muitos anos, como professora e coordenadora em pré-escola, outra mudança – de casa e de trabalho. Mudamos para o bairro do Campo Belo, zona sul da cidade, e a convite de uma amiga, e sem experiência prévia, iniciei um trabalho de Memória e Cultura com idosos. Redescoberta de mim, de minhas possibilidades, e de um novo caminho.

O bairro das Perdizes começa a fazer parte da ‘minha’ cidade com o ingresso na PUC/SP para fazer mestrado e doutorado e participar do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento – NEPE – em 1994! Novas aventuras, descobertas, encantamentos, realizações. Entre tantos estudos os temas memória, cultura e envelhecimento, que se entrelaçaram de modo quase que casual, orientaram nova etapa da vida na maturidade.

Trabalhando nos temas a cidade de São Paulo se destaca, pois as narrativas autobiográficas que escuto e registro, como docente e pesquisadora, tem a cidade como horizonte. Em homenagem à ‘minha cidade’ trago alguns trechos de narrativas colhidas nestes muitos anos de trabalho, nos quais a cidade antiga surge nas palavras destes velhos narradores[1]:

É outra cidade, outro bairro, outros tempos. O Largo Guanabara  onde formamos o grupo [de pintores] não existe mais […] o metrô passou. A 23 de Maio por baixo, acabou […] Aos domingos havia footing no Paraíso, em que as garotas passeavam de um lado e nós do outro e ficávamos flertando […] Mas, eram outros tempos […] Eu gostava muito de patins. Ia de patins ao Trianon para namorar […] patinava na Av. Paulista! Veja só! (homem, paulistano, 75a)

São Paulo é dura! Às vezes até irreverente, mas é benigna, acolhedora e contagiante. Quem toma conta destas plagas, e não a esquece jamais, é seu protetor – São Paulo – o apóstolo de lutas e vitórias. (homem, paulistano 78a)  

Hoje é dia do meu aniversário! Setenta anos de amor por esta querida e amada São Paulo, que acolhe a todos que aqui chegam de braços abertos. Para você São Paulo, hoje em meus setenta e quatro anos todo o meu carinho. (mulher, paulistana, 74 a)

A cidade era linda, com uma garoa que caía todos os dias. Durante muitos anos não guardamos os casacos, por causa da garoa e do frio que fazia em São Paulo. (homem, paulistano, 68 a)

Saíamos da Catedral, tomávamos lanche no restaurante Gouveia, que ficava ao lado do Mendes Caldeira, eu ia para a escola e ela para casa. Hoje guardo a lembrança de ter assistido a implosão do prédio Mendes Caldeira, a primeira a ser realizada no Brasil, para aumentar a nossa famosa Praça da Sé considerada o Marco Zero de São Paulo […].

Subia a escada rolante da Galeria Prestes Maia, saindo na Praça Patriarca onde constantemente tinha o homem do realejo com sua música e o periquito tirando sorte, as duplas caipiras tocando viola, o acordeonista tocando a música do 4º Centenário, de autoria do Mário Zan, o bater das horas do relógio da Igreja de São Bento. (homem, nascido em Sorocaba, 75 a)

Do lado esquerdo (da Praça da Sé) os edifícios que existiam, desde a Rua Santa Tereza, foram derrubados, inclusive o do cinema Santa Helena, quando do projeto de fazer a estação Sé do metrô. Houve tempo que a colônia espanhola que se reunia, todos os domingos, reunia no fundo da praça para conversar no café Moka, local de encontro. Após o encontro havia a Santa Missa, na cripta da Catedral, oficiada por um padre espanhol. No mês de julho, mais ou menos no dia 25, que é dia de Santiago Apóstolo – padroeiro da Espanha – havia apresentação da sociedade espanhola “Casa de Galícia” e depois a Santa Missa solene. (homem, espanhol, 76a)

Praça da Sé, palco de manifestações, comícios reivindicatórios, comícios de candidatos a cargos eleitorais […] ditadura, manifestações de estudantes, tão jovens, cheios de ideais […] Exército em prontidão, bombas de efeito moral, cheiro forte, fumaça, ardência nos olhos, latidos de cães, brucutus vomitando soldados… que puxavam, arrastavam, batiam, prendiam. Brasileiros contra brasileiros. Correria, debandada. E, depois, o silêncio quebrado pelo badalar do relógio da Igreja da Sé. Mas, a festa marcante, a festa das festas, ocorridas na praça, o movimento “Diretas Já”! Os gritos presos nas gargantas durante anos e anos de ditadura […] gritos de júbilo! O Hino Nacional brasileiro, lindo, cantado por Fafá de Belém… Som inesquecível, som inebriante cheio de fé e esperança.

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Durante esses últimos 30 anos, morando e trabalhando, estou diariamente no centro velho. Para mim este pedaço de São Paulo é uma festa constante. As lojas, restaurantes, botecos e barzinhos, sons, ruídos, cores, é meu cotidiano. Adoro andar no centro, me sinto alegre, participativa e com muita vontade de viver. A Praça da Sé me fascina, me subjuga e sempre sinto vontade de dançar, rodopiando nela… (mulher, paranaense, 66a)

Eu fui para Maria Antônia, estudar na USP. Foi um período muito interessante. Trabalhava o dia inteiro e ia correndo. À noite eu pegava aquele ônibus ‘papa-fila’, descia na Rua 9 de Julho, onde tem a sinagoga, subia a Caio Prado. Foi um período bem sacrificado. Daí eu comprei uma Romiseta. Era uma desgraça, porque passava aquele ‘papa-fila’ apertadinho, era sacudido pra lá e pra cá (homem, italiano 71a)

Ao cheiro do café Sucesso, misturava-se o cheiro gostoso do açúcar União. Das altas chaminés da Souza Cruz, na Rua do Oratório, saía o cheiro de fumo usado na fabricação de cigarros. Ainda hoje, conforme a direção do vento, sente-se o cheiro de doces feitos com coco, das fábricas nas travessas da Rua do Hipódromo e da rua Bresser. Nos anos 60, o cronista de um jornal de São Paulo dizia que a Mooca cheirava a fritura. Talvez não se possa contradizê-lo, pois o bairro era totalmente de casas baixas, somente alguns sobrados, e ao passar pelas calçadas era normal sentirmos o cheiro de temperos no feijão, molho de tomates para as macarronadas das famílias, bifes fritos em frigideiras e doces caseiros. Na minha casa sempre teve um doce feito com massa e frito no óleo, logo em seguida polvilhado com açúcar, e vinha de outras gerações de família, que é chamado de “crostoli”. (mulher, paulistana da comunidade italiana, 66a)

Os sinos nos pescoços dos cabritos, e os “cabriteiros” vendendo leite nas ruas, do barulho dos animais no quintal. O sino das igrejas, a matraca dos vendedores de biju, a gaita dos amoladores de faca, o som do rádio da marca Cacique, e um dos mais marcantes – o do bonde. O cobrador recebia o dinheiro e puxava uma cordinha, acoplada a um relógio com marcador, cujo som era “dim-dim”, e as pessoas faziam troça dos cobradores dizendo: “Dim-dim, dois pra  Light e um pra mim”. (mulher, paulistana da comunidade italo-espanhola, 73)

Chegamos a São Paulo no dia 11 de agosto de 1945 e fomos morar numa casa alugada na Rua Bica de Pedra, próxima a Heitor Penteado, que ainda era de terra, com muito mato que crescia em toda sua extensão. Logo após completar a maioridade tirei a carteira de trabalho e fui registrada na empresa onde já estava trabalhando, de palitos de sorvete. Não existiam ônibus, apenas bondes elétricos que vinha da cidade até o Largo Pompéia. O resto do caminho, cerca de 5 quilômetros, fazíamos a pé. Aqui em São Paulo, eu gostava mesmo de andar de bonde. Ele era elétrico e fazia um barulhão. O condutor fazia a viagem toda de pé, e o cobrador ficava nos estribos coletando o preço das passagens. O bonde era totalmente aberto, e os passageiros entravam direto pelos bancos. Podíamos tomá-lo em qualquer ponto, não existiam paradas fixas. Por ser aberto, a velocidade não era muito grande e muitos homens pegavam em movimento. Quando chovia, a opção era um bonde fechado, chamado “camarão”. Existiam linhas que se iniciavam na Praça da Sé e terminavam no Largo da Pompéia, outras terminavam na Lapa. (mulher, nascida em colônia italiana no interior do Estado, 73a)

Finalizamos aqui este trecho com algumas das muitas narrativas colhidas ao longo deste percurso pessoal e profissional com as lembranças da cidade. Não procuramos descrevê-la, seus pontos marcantes, seus pobres arredores, nem tampouco falar da sua gente, da ‘vida latente’. Tentamos mostrar a cidade através da fala de seus moradores, um universo restrito, sabemos, mas rico em significados e pistas para sua compreensão. Complexas demais, a cidade e a vida se deixam apenas entrever como uma possibilidade em cada um desses relatos.

Múltiplas faces tem esta cidade que acolhe e rejeita – mãe e madrasta que agrada e maltrata e exibe a face orgulhosa da metrópole em suas avenidas, arranha-céus, a sofisticação da ‘pequena Nova York’ em restaurantes de luxo, butiques da moda, carros importados. Mas ela oferece também a face amarga da pobreza, do desvalimento, da miséria absoluta nos rostos das ruas, as mãos estendidas num gesto de súplica/ameaça.

São Paulo, “cidade do progresso”, capital ‘locomotiva do Brasil’, que arrasta consigo toda a riqueza e toda a miséria. Vista do alto, a grandeza; vista de perto, a solidão. Giramos o caleidoscópio de imagens cinzentas e vemos outra formação: a face da solidariedade, da amizade, as uniões inter étnicas mostrando o abandono do preconceito, a aceitação dos outros ‘eus’ com seus costumes, músicas, comidas…

Impossível descrever a cidade: é preciso vivê-la e aceitar essas nesgas, entrevistas nos relatos, como uma de suas muitas possibilidades de compreensão.

E foste um difícil começo/ Afasto o que não conheço/ E quem vem de outro sonho feliz de cidade/ Aprende depressa a chamar-te realidade/ Porque és o avesso do avesso/ Do avesso do avesso…”. (Caetano Veloso, Sampa 1978)


[1] Os nomes foram trocados para preservar a identidade original, a idade é o da época das narrativas, selecionadas do grande acervo que possuímos. A maioria destes idosos hoje vive apenas por meio destes relatos.

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Vera Brandão

Pedagoga (USP); Mestre e Doutora em Ciências Sociais (PUCSP); com Pós.doc em Gerontologia Social pela PUCSP. Docente. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE-PUC/SP). Editora da Revista Longeviver (https://revistalongeviver.com.br) e Coordenadora Pedagógica do Espaço Longeviver. E-mail: veratordinobrandao@hotmail.com

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