Cuidar de alguém tende a elevar a autoestima e ampliar a sensação de contato com a realidade, o que só é verdadeiro nas situações em que o amor predomina sobre o ódio.
Ana Laura Moraes Martinez (*)
Cuidar do meu gato de 22 anos diagnosticado com um tumor em fase terminal tem sido uma experiência ao mesmo tempo dolorosa e rica para mim. Primeiro, fez-me aprender quão cínico é alguém que diz para cuidadores de doentes terminais que, afinal, todos vamos morrer. Cuidar até o fim de um doente terminal é uma experiência traumática e perturbadora para aqueles que a vivem de perto, pois, rompe-se a barreira necessária que separa os sãos dos doentes, a ponto de, na natureza, animais moribundos sempre se afastarem do bando para morrer.
É o que percebe Hans Castorp ao presenciar o pudor de seu primo Joachim à beira da morte, em A Montanha Mágica de Thomas Mann:
Como é estranho em pudor que sente em face da vida a criatura que se refugia num esconderijo para morrer, convencida de que não pode esperar da natureza exterior nenhum respeito e piedade para com o seu sofrimento e a sua morte (…)
Thomas Mann tinha razão. Para constatar o horror dos saudáveis com os doentes basta ficar alguns dias prostrado. Sobre isso, sempre me impressionou pensar como pessoas gravemente doentes possam querer continuar vivendo, o que entendo hoje ser fruto de uma profunda reorganização de prioridades que uma doença grave traz. Isso explica, por exemplo, porque uma mulher deprimida pode tornar-se inexplicavelmente forte quando descobre um câncer em si.
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Cuidado e autoestima
Voltando ao meu gato, a rotina de cuidados extenuantes que já perdura por quase um ano (soro, medicações diárias, troca de curativos, alimentação por sonda, etc.) me fez perceber o quanto o amor se expande por aqueles que cuidamos, embora as pessoas pensem o contrário. Que cuida-se melhor de quem já se ama.
Isso explica, por exemplo, porque muitos pais do sexo masculino não desenvolvem amor pelos filhos pequenos, na medida em que não os banham, os alimentam nem os embalam.
Neste ponto, ao que tudo indica, amamos mais os que precisam de nós, o que talvez explique a diminuição da ternura dos pais pelos filhos na medida em que estes crescem.
Outro aspecto que notei é que ser responsável por manter meu gato vivo, praticamente pele e osso e totalmente dependente de mim, tem-me feito sentir uma pessoa melhor e experimentar uma agradável sensação de estar vivendo coisas reais e sólidas. A ponto de que sentirei saudade da pessoa que tenho sido agora.
Com esta experiência compreendi melhor porque Freud disse em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, que ser capaz de amar eleva a autoestima, o que se observa em mães que cuidam diuturnamente de seus filhos pequenos, o que as faz autoconfiantes e crentes inabaláveis na própria força.
Desconfio até que isso tenha um efeito fortalecedor sobre a imunidade, sendo muito raro mães de filhos pequenos ficarem doentes. Tal observação me foi recentemente confirmada por um paciente com problemas de autoestima, que foi bastante aumentada depois de se tornar pai.
O oposto disso também parece verdade, como tem me ensinado outra paciente que não pôde cuidar dos pais velhos por questões pessoais.
Evidencia-se, portanto, que cuidar de alguém tende a elevar a autoestima e ampliar a sensação de contato com a realidade, o que obviamente só é verdadeiro nas situações em que o amor predomina sobre o ódio.
Tristeza ou remorso?
Neste aspecto, observei algo muito interessante. O pensamento recorrente de que meu gato pode morrer não me desperta remorso, na medida em que sei que é por amor que eu começo a desejar seu fim.
Caso diverso seria se eu estivesse irritada com o trabalho que ele me dá, ocasião em que o pensamento de que ele bem podia morrer significaria então o meu desejo de me livrar dele.
Penso que muitas pessoas que cuidam de entes queridos não podem desejar que o sofrimento interminável cesse com a morte porque ficam confusas se estão desejando isso por amor ou por quererem se livrar do fardo.
Neste aspecto, viver com tristeza ou remorso a perda de nossos entes amados dependerá inextrincavelmente da confiança em nossa própria capacidade amorosa, expressa na responsabilidade de cuidar dos que precisam de nós até o fim. O que se traduz na sabedoria popular do “eu fiz tudo o que podia por ele”.
Por fim, eu não estaria sendo capaz de cuidar do meu gato de modo tão amoroso se não fosse a inestimável ajuda do meu marido.
O amor que vem da infância
Refletindo sobre de qual fonte inconsciente brota nosso profundo amor por ele, concluí que vem da infância.
Trata-se do amor pelo animal que representa, na criança, o anseio por um objeto confiável e sincero, cujo ambiente humano talvez tenha falhado em ser, sendo esta a base da misantropia: uma decepção ressentida com os homens por sua imprevisibilidade e maldade.
O que nos leva à conclusão inevitável de que, para amar os animais (assim como para fazer samba), seja mesmo necessário ter-se experimentado um bocado de tristeza.
Experimentam-na crianças de natureza sensível que perceberam cedo demais a dureza da vida. Era o que para menina-em-Clarice-Lispector, que perdeu a mãe tão cedo, significava seu cão. E para o jornalista Paulo Francis e sua companheira Sonia Nolasco, seu gato.
Esta delicadeza, o adulto racional que sufocou a criança autêntica que um dia foi, se é que foi, não enxergará, sendo o amor da criança pelo animal considerado por ele uma coisa estúpida e sem sentido, como demonstra os bem-intencionados pais e mães que compram um cachorro idêntico ao que se afogou na piscina, para substituir o morto, convictos que a tola da criança nada perceberá.
Afinal, bicho não é mesmo tudo igual?
(*) Ana Laura Moraes Martinez – Psicóloga, mestre e doutora pela Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto. Trabalha desde 2003 na clínica psicanalítica com adolescentes e adultos. É supervisora e coordenadora de grupos de estudo sobre o pensamento de Freud. Este Artigo foi publicado inicialmente em Blog de Psicanálise. Site: http://www.psicologiaribeiraopreto.com.br
Foto destaque de Александар Цветановић/Pexels