Sua morte me leva a outra pioneira das receitas, nas telas da tevê gaúcha nos anos 1960. São as memórias lúdicas que fazem falar de Dona Mimi Moro.
Cremilda Medina (*)
Leio no jornal Folha de S. Paulo do dia 7 de maio de 2023, o título “Morre Palmirinha, que ensinou mulheres a cozinhar para o sustento, aos 91 anos”. Segundo o texto jornalístico, era tratada como culinarista, “algo entre a empáfia ostentada pelo termo chef e o lugar-comum da cozinheira”. No perfil que se segue, uma paulista de Bauru, descoberta pela televisão quase por acaso, aos 62 anos, “foi abraçada pelo público ao mostrar que sabia rir de si e dos erros de concordância de português que cometia à beira do fogão, assim como dos lapsos de memória diante das câmeras”. E por aí vai a recomposição biográfica daquela que se lançou na Record nos anos 1990.
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Deixo as performances de Palmirinha, bem como a citação aos parceiros de admiração como Ana Maria Braga ou Jô Soares e tantos outros astros da TV ou, acima de tudo, do público fiel que a seguiu, porque sua morte me leva a outra pioneira das receitas despojadas, fáceis para qualquer um, nas telas da tevê gaúcha nos anos 1960. E são as memórias lúdicas que fazem falar de Dona Mimi Moro. Nesses tempos, se configuravam as teorias da comunicação, com predomínio da visão crítica da indústria cultural. O fermento intelectual crescia com os ingredientes dos autores da Escola de Frankfurt; atribuiriam, na década seguinte, a hegemonia a Adorno e à consequente receita da manipulação das consciências. Mas Dona Mimi reinava na primeira tevê instalada no Rio Grande do Sul (a Piratini dos Diários Associados, dezembro de 1959). Aquela senhora na sua cozinha ao vivo não alienava as telespectadoras, mas lhes dava alimento saudável e fácil de operar no cotidiano doméstico.
Tal era o sucesso de audiência que a Editora Globo de Porto Alegre que já publicara grandes autores, muitos por sugestão do escritor da casa Erico Verissimo, não demorou a perceber como seria oportuno registrar as receitas da Dona Mimi na galeria dos famosos. Coube a mim, secretária editorial à época, receber a senhora e tratar com ela a recepção de seus originais. Não era telespectadora, nem fã de suas receitas, mas Dona Mimi logo me conquistou no entusiasmo e na simplicidade com que se comunicava ao vivo e, por suposto, na tela (segundo o atestado sucesso de audiência).
Aí comparece, como disse antes, a lembrança lúdica em meio ao labor da velha Editora Globo, meu segundo emprego (o primeiro foi na Revista do Globo, ainda estudante de Jornalismo e Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Na história da editora (1883-1986), que lançara importantes títulos da literatura nacional e internacional, eu estava à volta com duas negociações – por um lado, tentava convencer minha chefia de que valia a pena lançar no Brasil a obra do argentino Jorge Luis Borges; por outro lado, tinha de encaminhar um livro de receitas.
Até esse momento, a editoração que me dava mais trabalho era a de uniformizar itens e subitens do manual de engenharia, mas não esperava o que veio às minhas mãos do futuro livro 300 receitas de dona Mimi. Esfogueada entre televisão e o projeto editorial, chega com um maço de folhas de papel de seda para me entregar e vai explicando, que anda muito ocupada com os programas da tevê, que só tem um pouco de tempo à noite quando vai deitar, que, na cama, com uma prancheta e papel escreve à mão as receitas, que, desculpe, entrega direto os papéis, nem pôde passar a limpo. Recebo os originais meio embasbacada. Que dizer, só obrigada Dona Mimi, pode deixar, damos um jeito. Ela acrescenta, esta é a primeira entrega, depois vêm mais.
E vieram sucessivas levas desse inédito jogo de originais para o livro de receitas. Dona Mimi compunha à mão recostada e exausta ao deitar o receituário, sem as divisões clássicas de obras do gênero, para ela não precisava de categorias como ingredientes e modos de fazer, o fôlego era único. O que então me salva é uma senhora da equipe de revisão da editora, fã dos programas da Dona Mimi Moro, que se prontifica a reordenar e datilografar os originais. O livro toma corpo gráfico, a autora feliz com os resultados, falta só encontrar ilustrador. Vou a campo e chamo uma jovem e promissora artista, Regina Silveira.
Não imaginava, mais tarde, quando me mudei para São Paulo (dezembro de 1970), quão promissora e autora de vanguarda seria a ilustradora das 300 receitas de dona MIMI. O fato é que as ilustrações de Regina Silveira e as receitas de Dona Amália Mascarello Moro criavamuma harmoniosa conjugação da indústria cultural. E ao mesmo tempo em que preparava o lançamento do livro Ficções de Jorge Luis Borges, numa tradução ímpar do poeta Carlos Nejar.
Sim, fui aprendendo que tanto na industrialização da cultura quanto na cultura pós-industrial ou na tecno cultura, vivemos dinâmicas que ultrapassam dicotomias ou hierarquias de valores estratificados. Dona Palmirinha e, em tempos anteriores, Dona Mimi mexeram com os ingredientes culinários de nossos arquétipos na cozinha; Regina Silveira dialogou com a arte do traço na transcendência do imaginário.
E para dar um gostinho de concretude da cozinha, aí vai uma receita de Dona Mimi Moro:
pudim de milho verde
Ingredientes:
5 espigas de milho verde
4 tomates
1 colher, de sopa, de cebola ralada
Salsa picada
2 ovos
1/2 xícara de queijo ralado
2 colheres, de sopa, de maisena
1 xícara de leite
Corte os grãos das espigas, e passe-os no liquidificador com o leite. Coe em peneira, misture-lhes todos os ingredientes, depois derrame em fôrma de anel untada com manteiga e leve ao forno para dourar.
(Página 127 do capítulo verduras, legumes, do livro de Amália Mascarello Moro 300 receitas de dona MIMI, Porto Alegre, Editora Globo, 1970.)
(*) Cremilda de Araújo Medina, jornalista, pesquisadora e professora titular sênior da Universidade de São Paulo, é autora de 20 livros e organizadora de 60 coletâneas. Na década de 1960 se profissionalizou em Porto Alegre como jornalista e professora universitária (URGRS), quando trabalhou na Revista e na Editora Globo. A história que conta neste texto é dessa época, antes de se radicar em São Paulo, em dezembro de 1970.
Fonte: Jornal da USP
Foto destaque: Reprodução/YouTube @Palmirinha Onofre