Como conciliar urbanização e envelhecimento? Esta é uma preocupação que tem mobilizado alguns setores da sociedade e vale refletir acerca dos seus desdobramentos. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), metade da humanidade hoje já vive nos centros urbanos e, em 2050, a expectativa é de que este número dobre.
Maria Lígia Mathias Pagenotto
Já em relação ao envelhecimento, importante lembrar que, neste mesmo ano, haverá no planeta quase 2 bilhões de pessoas com mais de 60 anos, de acordo com a ONU.
O que tem sido feito em relação a esta realidade? No final de março, um grupo de especialistas se reuniu na Universidade de São Paulo (USP) para debater esta questão. O evento fez parte do ciclo “Idosos no Brasil: Estado da Arte e Desafios”, promovido pelo Institutos de Estudos Avançados (IEA), ligado à USP, pelo Grupo Mais-Hospital Premier e pela Oboré Projetos Especiais de Comunicação e Artes.
Foi apresentada uma mesa-redonda, coordenada por David Braga Jr., do Grupo Modelo de Atenção Integral à Saúde (Mais), que contou com a participação do médico geriatra Alexandre Kalache, da Academia de Medicina de Nova York (Estados Unidos), e da professora Guita Grin Debert, do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Para Guita, o tema da velhice representa um enorme desafio. Hoje, segundo ela, esta questão, que antes estava praticamente restrita à esfera privada, é uma questão pública.
“A velhice passou a fazer parte da geografia social, por assim dizer. À medida que a gerontologia se consolidou como saber específico, criado para identificar necessidades do idoso, ela se tornou um ator político e também um agente do mercado de consumo”, afirmou.
Segundo a professora da Unicamp, há um processo de transformação em curso muito importante em relação à velhice. “Em vez de um momento de perdas, a velhice passou a ser considerada um momento de lazer, de novas experiências e projetos.”
Com base nisso, Guita disse que o Brasil adquiriu know-how e sofisticação nas opções de lazer e atividades para os idosos. Mas fez uma objeção: o lazer disponível se limita a atrair aqueles que têm preservada sua autonomia funcional.
E para os outros, o que o país oferece? Muito pouco, de acordo com a pesquisadora. Como integrar este idoso à cidade? Faltam políticas que versem sobre as diferenças também no campo da autonomia e da capacidade.
“É preciso avaliar sobretudo as diferenças de custos de políticas públicas para os idosos ‘jovens’ e para os outros. É hipocrisia dizer que existe uma política para idosos, se ela só está beneficiando justamente a parcela que tem menos dificuldades. São boas iniciativas, mas têm foco apenas em uma parcela privilegiada”, afirmou.
Sobre a questão da moradia, tema do debate também, Guita tocou em alguns mitos. “Devemos fugir da confusão entre morar só e estar submetido à solidão. Principalmente porque hoje é possível operar com a ideia da intimidade a distância, viabilizada pelos meios de comunicação, sobretudo eletrônicos. E isso pode ocorrer até mesmo fora das relações familiares.”
Para Guita, mais do que valorizar a ideia do idoso sempre próximo à família, é preciso pensar mais longe. “É importante rever essa ideia, quando pensamos na cidade que acolhe o idoso”, afirmou.
Na opinião da antropóloga, com base em estudos científicos, é muito provável que o idoso com autonomia quase sempre tenha preferido viver com privacidade e isso nem sempre significa estar ao lado da família.
E quanto à integração geracional? Guita também apresentou sua visão. “Muitas vezes, nos ambientes onde todos são idosos, a velhice deixa de ser uma marca identitária e a satisfação passa a ser maior. Há uma busca de independência e de estar entre os iguais, de forma similar aos adolescentes. É importante não ter uma visão binária de segregação e integração”, disse.
Outro mito muito difundido em relação à moradia é aquele que diz que o idoso deve permanecer sempre na mesma casa, ou bairro, para se sentir participante da comunidade, seguro.
“Mas isso nem sempre é verdade, porque a dinâmica urbana é muito intensa. Os bairros podem passar por rápidos processos de degradação. Ou podem passar por um súbito enriquecimento, fazendo com que os antigos moradores desapareçam. Nesses casos, as perdas da coletividade estão muito presentes. A ideia de que a comunidade é sempre boa e deve permanecer deve ser revista”, disse.
O mais importante, porém, em sua fala, ficou por conta da necessidade de dar voz aos idosos em nossa sociedade. “Essa já é uma ideia muito presente, mas é preciso valorizar a pluralidade de vozes. Não se pode ouvir representantes, mas os protagonistas, em toda sua diversidade. É preciso que haja vozes dissonantes.”
E de quem é a responsabilidade pelo idoso sem autonomia? A professora disse que a carga maior, dentro das famílias, sempre recai para a mulher. Ela criticou as políticas públicas brasileiras que existem em relação a esse grupo etário. “Há uma hipocrisia nas políticas de distribuição de renda que têm enfoque familiar. Elas concentram as responsabilidades na família e, em especial nas mulheres, que acabam assumindo essas obrigações”, afirmou.
Kalache falou ao público sobre a necessidade de se criar, com urgência, no país, uma cultura do envelhecimento. Isso inclui mudanças nas cidades e no comportamento ao longo da vida.
“É importante destacar que 2050 não é uma data distante. Os idosos de quem estamos falando são as pessoas que hoje já são adultas, que podem ter 20 ou 40 anos.”
Ele lembrou que, no modelo convencional de sociedade, a primeira etapa da vida era dedicada ao aprendizado, enquanto a segunda etapa era voltada para a produção e a aplicação do aprendizado no trabalho. A etapa final seria dedicada ao descanso e ao ócio.
“Não podemos mais pensar assim. A expectativa de vida é cada vez mais longa e as pessoas serão idosas por um período cada vez maior de suas vidas. Elas terão condições de produzir até uma idade bem mais avançada. Por outro lado, a pessoa não pode mais parar de adquirir conhecimento aos 25 anos de idade, pois o aprendizado fica obsoleto cada vez mais cedo”, disse.
Segundo Kalache, com os avanços da medicina e tecnologia, a capacidade funcional dos indivíduos será preservada, cada vez mais, para além dos 65 anos. Com isso, espera-se que a aposentadoria compulsória possa ser revista. É uma tendência saudável e deve ser vista como um avanço para a humanidade, de acordo com o médico.
O Brasil, que passa pelo processo de envelhecimento e de urbanização intensa agora, é um modelo da realidade que se desenha no mundo. “Somos um país emergente já urbanizado, que envelhecerá mais do que qualquer outro. Mas temos que fazer nossa própria discussão sobre o envelhecimento. Os modelos do Japão, da Dinamarca ou da França não nos interessam. Esses países enriqueceram primeiro, depois envelheceram. Não teremos essa oportunidade. Se imitarmos esses modelos, vamos apenas perpetuar a desigualdade”, disse.