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Perder os idosos para o Covid-19 é a vida?

Aqueles que nos antecederam, sejam velhos ou que se tornaram, ou ainda os que virão a ser idosos, são nossos alicerces, sobretudo os das matrizes familiares. E sobre esta base, erigimos o edifício de nós mesmos, a vida!

Evaldo Cavalcante Monteiro (*)


Uma vez perguntaram qual era meu plano para o futuro e expliquei que eu estava vivendo o futuro. Aí afirmei que a velhice era a sobremesa da vida. Dá para prolongar um pouco, comer uma ambrosia, tomar um cafezinho, um licor, um chazinho e assim vai-se levando…” (Emiliano Queiroz, 84 anos)

No começo da pandemia no Brasil, ainda em abril, o ocupante do executivo nacional, ao abordar as mortes em entrevista à imprensa, teria dito: “Lamento a situação que atravessamos com o vírus. Nos solidarizamos com as famílias que perderam seus entes queridos, que a grande parte eram pessoas idosas, mas é a vida.” A fatalidade desta fala foi refletida por outros gerontólogos que definiriam a situação como gerontocídio. Outros analistas veriam a conjuntura atual do país sobre a ótica do que denominariam de necropolítica. Na nossa compreensão, estas leituras são tanto plausíveis como válidas, contudo, nosso intuito, aqui, seria o de seguir outro caminho. Para tanto, necessitamos confrontar o citado discurso com as práticas e as vivências dos próprios velhos.

No discurso, o ocupante afirmaria: “mas é a vida”, ao se reportar às mortes dos idosos. Entendemos que estaria subjacente à sua fala a ideia da morte como algo inevitável, uma fatalidade. E, em assim sendo, não haveria nada que pudesse ser feito. Em nossa análise, a inevitabilidade decorreria, de um lado, do fato de a velhice estar próxima da finitude e, do outro, de os velhos não ter mais a contribuir para a sociedade. Um sentido utilitarista da existência em que eles seriam percebidos como uma peça gasta e, enquanto tais, deveriam ser removidos e substituídos para a máquina social continuar funcionando. Mas, seria necessariamente a vida humana assim?

Desta forma, ela estaria destituída de seu valor intrínseco, sendo tomada como objeto sem serventia ou, pior, como um peso social. ‘Coisificados’, os velhos tornar-se-iam seres descartáveis, morte social, logo passíveis de serem trocados. Assim, na fala do ocupante do executivo, a morte por Covid-19 seria apenas uma ratificação da programação posta socioculturalmente. Masseriam os velhos, de fato, inúteis? E para quem? Os velhos não nos fariam falta? 

Saiamos, pois, do campo da retórica e vejamos, na prática, como alguns velhos têm vivido suas velhices e se eles seriam de fato inúteis e improdutivos. Apresentaremos, a seguir, algumas trajetórias de vida de alguns idosos, mostrando como eles chegaram a essa fase e como a têm concretamente vivido. Procuramos contemplar diversas áreas de atividades humanas. A escolha recaiu pela sua longevidade e pela participação social, cultural ou familiar.

Mariazinha Barroso, 81 anos (1932 -2013)
Inicialmente, observo que os velhos trazidos aqui são de origem cearense. Eles foram postos em grupos de atividades. O primeiro bloco é do gerontólogo cearense: Maria José Lima de Carvalho Rocha Barroso, a Mariazinha Barroso, 81 anos (1932-2013)(1) e Zilma Gurgel Cavalcante, 77 anos (1943-). Neste item, selecionamos a Mariazinha Barroso, integrante da primeira geração de gerontólogo do Brasil. Presidiu a Associação Cearense Pró-idosos – ACEPI entre 1978 e 2008 e o Conselho Nacional de Direitos do Idoso – CNDI em 2003, na primeira gestão; foi membro fundador da Associação Nacional de Gerontologia – ANG; participou da Assembleia Mundial para o Envelhecimento – Madri 2002; foi Conselheira do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS em dois mandatos representando a ANG; autora de cinco peças teatrais: Uma nova mulher, Estrelas do outono, Muito além do crepúsculo, Carta de uma idosa e Mulher e violência, relatora de dez eventos internacionais e coordenadora de seis eventos entre nacionais e locais. Permaneceu ativa enquanto pode.

Emiliano Queiroz, 84 anos (1936-)
O Segundo bloco a ser apresentado é dos atores cearenses: Emiliano Queiroz, 84 anos (1936- ). Participou no cinema e na televisão de 1964 a 2020 com 128 trabalhos, vide detalhamento em anexo; Lupe Gigliotti, 84 anos (1926 – 2010); José Wilker, 70 anos (1944 – 2014) e Denise Dumont, 65 anos (1955 – ). Neste item, selecionamos o artista Emiliano Queiroz, que permanece ativo até o presente ano e tendo uma contribuição de 128 participações na televisão e em filmes no cenário cultural deste país. 

Chico Anysio, 81 anos (1931-2012)
O terceiro bloco destacado é o dos humoristas cearenses: Chico Anysio, 81 anos (1931 – 2012), Renato Aragão, 85 anos (1935 – ). Neste item, o destaque é Chico Anysio, que criou 209 personagens, publicou 25 livros, gravou 11 discos e teve 19 participações no cinema. Esteve contribuindo até um ano de sua morte, seguido do período de convalescência e morte.

Rachel de Queiroz, 93 anos (1910-2003)
O quarto bloco exaltado é o dos escritores cearenses: Rachel de Queiroz, 93 anos (1910 – 2003); Patativa do Assaré, 93 anos (1909 – 2002); Pe. Antônio Batista Vieira, 84 anos (1919 – 2003); Antônio Sales, 84 anos (1868 – 1940). Neste tópico, chamamos à atenção para Rachel de Queiroz, que escreveu 27 obras literárias entre 1930 e 2000 e foi a primeira mulher a ter assento na Academia Brasileira de Letras.

Aldemir Martins, 84 anos (1922-2006) e Heloisa Joaçaba, 87 anos (1926-2013)
O quinto bloco enfatizado é o dos artistas plásticos cearenses: Aldemir Martins, 84 anos (1922-2006), Heloisa Joaçaba, 87 anos (1926 – 2013), Barrica – Guilherme Clidenor de Moura Capibaribe, 80 anos (1913 – 1993), Raimundo Cela, 64 anos (1890 – 1954), Sinhá D’Amora Federalina Correa de Amora Maciel, 96 anos (1906 – 2002) e Heloisa Joaçaba, 87 anos (1926 – 2013). Neste tema, destacamos dois: Aldemir Martins, 84 anos, pela projeção nacional como artista plástico, ilustrador, pintor e escultor autodidata, com sua trajetória de 38 exposições e premiações, um nome na história recente que teve presença no cenário nacional; e Heloisa Joaçaba, 87 anos, pintora, desenhista, tapeceira, escultora e gestora cultural que, pela sua paixão, dedicação à arte e seu empenho na afirmação da produção local da arte, fundou o Centro de Artes Visuais, depois chamado de Casa de Cultura Raimundo Cela, o Museu de Arte da UFC, e organizou o Museu de Arte e Cultura Populares do Ceará, ao qual doou 920 peças do seu acervo particular.

Evaldo Gouveia de Oliveira, 91 anos (1928-2020)
O sexto e último bloco sublinhado é o dos cantores e compositores cearenses: Evaldo Gouveia, Evaldo Gouveia de Oliveira, 91 anos (1928-2020) músico, compositor e cantor, faleceu em 29 de maio deste ano decorrente da Covid-19; Ednardo, José Ednardo Soares Costa Sousa, 75 anos (1945- ); Belchior, Antônio Carlos Belchior, 71 anos (1946 – 2017); Fagner, Raimundo Fagner Cândido Lopes, 71 anos (1949-) e Amelinha, Amélia Cláudia Garcia Collares, 70 anos (1950-). Ressaltamos que a maior expressão foi Evaldo Gouveia, que começou a compor em 1957, aos 39 anos, e faleceu aos 91 anos pela Covid-19. Ele produziu 1.200 composições, que foram interpretadas por diversos cantores, destacamos alguns: Nélson Gonçalves, Pedro Caetano, Nora Ney, Alaíde Costa, Anísio Silva, Morgana, Agnaldo Rayol, Moacyr Franco, Altemar Dutra, Cauby Peixoto, Anísio Silva, Wilson Simonal, Agnaldo Timóteo, Jair Rodrigues, Maysa, Ângela Maria, Jamelão, Dalva de Oliveira, Elymar Santos, Chitãozinho e Xororó, Gal Costa, Maria Bethânia, Zizi Possi, Emílio Santiago, Julio Iglesias, Joanna, Cris Braun, Ana Carolina, Simone e Fafá de Belém. 

De algum modo, fomos e somos perpassados, povoados, em graus variados, por estes seres, ou, mais precisamente, por suas ações e produções. Quantos de nós foi apresentado à velhice pelas mãos e olhos de Mariazinha? Alguns de nós soubemos o que era sentir a sede e a fome no O quinze, e não se pasmaram com a fibra de Maria Moura, de Raquel de Queiroz? Como rimos com a ingenuidade de Dirceu Borboleta (Emiliano Queiroz) em O bem-amado e nos deleitamos com o impensável trio amoroso entre velhos, Brígida (Cleyde Yáconis), Diógenes (Elias Gleiser) e Benedetto (Emiliano Queiroz) em Passione? Quem não se lembra do humor refinado de Chico Anísio interpretando Salomé de Passo Fundo dando conselhos ao então presidente João Batista Figueiredo? E o escrachado de Renato Aragão ironizando as dúvidas amorosas de Terezinha de Chico Buarque na voz de Maria Bethânia? Quantos de nós não se inebriou com o poema “Canteiros” de Cecília Meireles cantado por Fagner? E nós, filhos desejosos por sermos diferentes de seus pais, ao ouvirmos Elis Regina cantando a música de Belchior, nos perguntavam se éramos ou não “Como nossos pais”? Quem de nós, nalgum momento, não bebeu todas ouvindo Altemar Dutra ou outro artista cantando Evaldo Gouveia: Alguém me disse, Sentimental demais ou Brigas, que falava do nosso amor acabado, traído ou não correspondido?

Mas você, leitor, pode objetar que esses velhos e seus feitos não correspondem à realidade, alegando que estes exemplos são de uma minoria ou são de uma classe favorecida, portanto, longe da maioria da população e da realidade da velhice. Então, permita-nos apresentar-vos outras provas.

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Solidariedade intergeracional intrafamiliar

Trabalhamos com idosos de baixa renda, eles recebem, na sua imensa maioria, um salário mínimo por mês. Estes velhos, com seus baixos proventos, ajudam os filhos e netos. Eles pagam estudo para filhos ou netos, ajudam com fardamento e material escolar dos netos e com medicação, além de cuidarem dos netos, fazendo-se, às vezes, de creche, e os levarem para consulta, enquanto os pais vão para o trabalho. Quando os filhos ficam desempregados ou se separam, podem voltar para casa dos pais. Todos estes feitos fazem parte do que chamamos de papel de retaguarda, uma solidariedade intergeracional intrafamiliar, que os idosos desenvolvem quando as famílias precisam deles. O IBGE (2013) atesta isto quando sinaliza que 64,4% dos velhos do País são pessoas de referência da família. Ademais, há a transmissão das histórias familiares e valores, além das culturas do grupo e significado social para a vida comunitária. Ações desenvolvidas por eles. Isto fica mais visível nas culturais tradicionais indígenas ou afrodescendentes. 

E eles não param por aí. O parco recurso que os idosos recebem da Previdência Social movimenta a economia dos municípios. Isto é possível? Sim, haja vista que o volume de recurso lançado na economia local é maior que o repasse do Fundo de Participação dos Municípios, recurso que os municípios recebem para o custeio de seus gastos. Este universo significa 64% (sessenta e quatro por cento) dos municípios brasileiros, ou seja, 3.564 municípios do país têm a economia do idoso dependente, quer dizer, da renda dos aposentados e pensionistas idosos. Onde estão os velhos tidos como economicamente dependentes?

Observemos que os exemplos de velhos, independentemente da idade, participaram ou continuam participando da sociedade trazendo seus pensamentos, sentimentos e reflexões como contribuições suas para o contexto cultural, familiar, social e econômico em que estão inseridos.

Aqueles que nos antecederam, sejam velhos ou que se tornaram, ou ainda os que virão a ser velhos, são nossos alicerces, sobretudo os das matrizes familiares. E sobre esta base, erigimos o edifício de nós mesmos. E, para tanto, vamos escolhendo e agregando os tijolos, a areia, a cal e o cimento, a partir do folheto de ofertas das produções dos atores familiares, sociais e culturais, a exemplo dos citados, que nos estejam disponíveis para esta construção no enquadre social e histórico em que estamos inseridos. Desta forma, eles, hoje velhos, se tornam constituintes de nós mesmos. 

Cônscio desta condição, expresso a minha gratidão aos muitos velhos que me habitam, e, em particular, àqueles pelo vigor de seus gestos, calor de seus afetos, brilho do olhar e lampejo do pensamento que se fizeram referência para mim, meus Mestres. Mas também a esses velhos anônimos para a maioria que encontro no meu trabalho e que heróis e heroínas, que muito me ensinaram e ensinam sobre a vida e a velhice. E como diz o poeta Gil, já me deram “régua e compasso”, instrumentos e medidas apropriadas para elaboração do projeto de mim mesmo e do meu envelhecer. A morte destes velhos.

Ante os argumentos citados, podemos aduzir que os idosos, independentemente de classe social, não são inúteis, pois têm contribuído com a sociedade em geral, seja no âmbito da cultura, da história, na urdidura dos laços familiares e sociais ou da economia. Suas mortes, sim, afetaram a todos nós, pois abalam nossa sustentação, nossos alicerces e, em particular, aos que eles ajudam com solidariedade intergeracional intrafamiliar no exercício do papel de retaguarda como para a sociedade em geral. Além disso o respeito lhes são devidos, não decorre apenas dele em si, de suas contribuições ou de suas fragilidades, mas o é, sobretudo, porque são parte de nós, do nosso vir a ser velhos.

Nota
(1) As datas postas, posterior ao nome, referem-se a data de nascimento e de morte nesta ordem, por exemplo (1936 – 2018). Quando constar a penas a primeira seguida do espaço vazio, implica que o mesmo está vivo, por exemplo (1961-).


Evaldo Cavalcante Monteiro – Terapeuta Ocupacional, Especialização em Gerontologia Social, Administração Hospitalar, Abordagem Sistêmica da Família e Método Terapia Ocupacional Dinâmica, Mestrado em Gerontologia Social e Doutorado em Educação. É  professor da Especialização em Gerontologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. E-mail: evaldo.monteiro@sps.ce.gov.br


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