Não quero deixar seu pai, não quero sair do bairro. Vivi a vida toda aqui. Sei que estou ruim também, a idade chega para todos... Uma crônica sobre o morar na velhice.
Bruno José Monte Rey da Cunha (*)
Minha filha chega em casa de repente, resolve almoçar lá sem avisar, não nos comunica nada. Seu pai, meu marido, cada vez pior devido ao Alzheimer, senta-se conosco, calado e aparentemente irritado. Sirvo a comida e começamos a falar sobre coisas irrisórias, mas é no final, na deliciosa sobremesa de pudim, que ela me apunhala. Victoria é minha filha mais velha, a quem primeiro amei e amamentei. Cuidei no rigor e no desespero para garantir que nenhum choro se alastrasse, para aliviar qualquer dor e para amar a qualquer custo.
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– Mãe, hoje vou levar papai para morar num novo residencial para idosos, o que quero saber é se você quer ir junto ou quer ir morar perto de mim?
Não consigo responder, um desespero nasce dentro de mim. Por mais que seja horrível cuidar do seu pai, ter que dar banho nele, ser xingada, até agredida, nada pior é do que ser mudada para um asilo ou sair de casa. Asilo que me minha amiga foi posta e não durou 3 meses, caiu no banho e nunca mais se recuperou, foi a queda final. O mesmo parece se repetir comigo e pior terei que abandonar meu marido para não ir? Para onde foi o amor dos meus filhos, para onde foi todo o cuidado que tive a eles. Tento responder, mas sinto ser engolida pela própria voz ou pela minha própria filha.
– Mãe, não aguento mais te ver assim, te ver humilhada pelo papai, que já não é mais meu pai. Que deixou de ser quando começou aqueles esquecimentos e aquelas transformações brutas. Não os vejo mais como um casal, não sei mais que tipo de filha ser. Conversei com o Manoel e esse residencial é o melhor da região, papai vai ficar bem lá, super cuidado. O que estou preocupada agora é com você, suas dores na perna, os remédios… Para onde você quer ir, mamãe?
Ela se revela. “O que fizeram de ti minha filha?!”. Não quero deixar seu pai, não quero sair do bairro. Vivi a vida toda aqui. Sei que estou ruim também, a idade chega para todos. Minhas pernas doem, não têm força, não têm mais a vitalidade de antes. Já não consigo sair sozinha, nem a Rose consegue mais me ajudar, até tentamos, mas dói muito. Agora dói tudo, dói de ouvir, de saber que planejou tudo por trás. Estamos sendo traídos. Tento levantar a voz, mesmo que nunca tenha gritado com meus filhos. Tento puxar o ar e gritar, mas apenas poucas baixas palavras saem.
– Quer mais pudim?
Não consigo confrontar minha filha, estou cansada, quero deitar. Levanto e vou para o quarto, ligo o rádio, finjo dormir. Finjo que nada aconteceu. Finjo que meus filhos continuam a ter suas vidas e que logo mais será o aniversário do nosso neto. Finjo tanto que está tudo bem.
Durmo e sonho. Não sei se era pesadelo. Estou num orfanato, temos que pegar os vegetais na hortinha, temos dificuldades, uma tia brava e gorda chega, nos xinga brutalmente, agride um menino por ter destruído a terra, pensamos ser os próximos. Ela puxa a cenoura e sai uma cabeça. É horrível. É a cabeça do meu marido, cheia de vermes, sem olhos. Acordo. Minha filha está do meu lado, com a mão na minha cabeça:
– Mãe, Mãe… acorda, é hora de ir.
(*) Bruno José Monte Rey da Cunha – Psicólogo ela PUC-SP. Especialização em Gerontologia pelo IPGG/SP. E-mail: brunomonterey@gmail.com
Foto destaque de Вениамин Курочкин/Pexels