Como representações de velhice renascentista refletem as concepções de velhice daquele período e como estas ainda se encontram como “máscaras” sedimentadas em nossa sociedade até os dias atuais.
Maitê Paixão Garcez Soares da Silva (*)
Durante muito tempo, a velhice foi compreendida e analisada por estudiosos da área a partir de uma perspectiva biológica, o que contribuiu para a construção de um caráter universal para o envelhecimento. Entretanto, este não deveria ser o único fator levado em consideração quando se propõe uma discussão sobre este processo tão complexo e multifacetado que, conforme afirmado por Concone (2007), também se evidencia como uma construção sociocultural, estando, assim, sujeito às definições da cultura em que se insere, como as “máscaras” presentes até hoje.
A partir disso, resgato uma das formas mais antigas de teatro popular, a Commedia Dell’Arte, de modo a estabelecer uma relação entre dois de seus personagens, Pantalone e Dottore, com o contexto histórico renascentista no qual foram construídos, a fim de revelar como tais representações refletem as concepções de velhice daquele período e como estas ainda se encontram como “máscaras” nas sociedades atuais.
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A velhice na renascença: as máscaras de Pantalone e Dottore
Simone de Beauvoir, em sua obra A Velhice (1970), faz um resgate histórico das diferentes percepções do velho nas sociedades, conforme as influências do pensamento de cada época. A partir de sua leitura, observa-se que o período compreendido entre os séculos XIV e XVI, conhecido por Renascença, caracterizou-se por uma modificação nas relações de poder, devido à ascensão da burguesia e ao renascimento do comércio, o que se refletiu diretamente na concepção de velhice daquele momento.
Desse modo, nas classes abastadas, o velho, que durante a Idade Média encontrava-se excluído da vida pública, tem a possibilidade de ascender a partir da acumulação de riquezas. Entretanto, valores como a dignidade e o respeito ainda se reservavam somente ao idoso de famílias nobres, os quais possuíam riquezas garantidas pelo direito divino, sendo o velho burguês alvo de sátiras por parte da sociedade, que o representava, nos meios de entretenimento, a partir de personagens caricatos, destacando a avareza e a incapacidade física como suas principais características.
É neste contexto em que surge, na Itália do século XVI, a chamada Commedia Dell’Arte. Emergindo como um gênero teatral em contraposição ao teatro erudito, a Commedia Dell’Arte apresentava-se como um teatro popular, sendo a improvisação, os personagens fixos e o uso de máscaras para representar alguns deles, três de suas principais características. Com isso, os atores, que encenavam em ruas e praças, incorporavam sempre os mesmos papéis, sendo estes estereotipados em suas características e comportamentos, e abordavam temas próximos à realidade da plateia, seguindo apenas um roteiro (canovaccio) para nortear a atuação. Entre estes personagens, dois se evidenciam como representações satirizadas da velhice na Renascença: Pantalone e Dottore.
A partir dos escritos de Contin (1999), Pantalone é o típico patrão que enriqueceu com o comércio em Veneza, sendo caracterizado principalmente por sua avareza. Tendo duzentos e noventa e cinco anos, a gravidade apresenta significativo efeito em seu corpo. No entanto, Pantalone apresenta-se sempre muito ativo, o que se evidencia em seu grande entusiasmo pelo dinheiro e pelas moças da cidade com as quais flerta constantemente, recitando poesias às mesmas; não conseguindo, entretanto, consumar uma relação sexual propriamente dita.
É possível perceber, a partir de sua descrição, que tal personagem remete às percepções satirizadas da velhice propagadas na época em que fora criado, principalmente em sua ganância e impotência sexual. Mas tais características, no âmbito subjetivo e pessoal, poderiam ser interpretadas em relação, visto que seu apego excessivo ao dinheiro seria passível de ser compreendido como um modo de compensar sua incapacidade de atuação no domínio sexual ativo. De um modo geral, constituindo-se como um velho burguês, não lhe são atribuídas características agradáveis ou heroicas, sendo estas reservadas aos personagens jovens.
Assim como Pantalone, a descrição do personagem Dottore também remete ao estereótipo do idoso avarento. Não tão velho quanto o primeiro, Dottore Grazziano é um médico de origem bolonhesa, sendo caracterizado como grosseiro, incômodo e “estraga-prazeres”. Acreditando ter conhecimento de todas as línguas e ciências, sua forma física apresenta-se como inflada e volumosa, de modo a representar sua presunção.
Beauvoir, no livro A Velhice, descreve: “O outro velho é o Doutor, um grande estúpido pedante, membro de todas as academias […] é ignaro, diz enormes tolices, estropia o dia inteiro citações gregas ou latinas” (1970, p. 188). Considerando a citação e tais aspectos enrijecidos de sua personalidade, torna-se evidente, mais uma vez, a representação pejorativa do idoso que, em contraponto com a imagem arquetípica do Velho Sábio, se revela como um charlatão, falseando suas habilidades intelectuais.
Apesar de refletir o contexto econômico e cultural renascentista, o incômodo ocasionado pela presença de Dottore também poderia ser interpretado por meio de uma certa intolerância à velhice, uma vez que “a presença de idosos ‘nos nossos espaços’ nos confrontaria com a passagem do tempo para nós próprios, nos obrigaria a encarar nossa fragilidade e nossa finitude” (CONCONE, 2007, p. 21)
Concluindo, a partir das relações e reflexões propostas, torna-se evidente o reflexo das concepções culturais, econômicas e sociais da época renascentista nas representações teatrais da velhice daquele período. Personagens satirizados, Pantalone e Dottore podem ser encontrados nos estereótipos dos velhos avarentos e charlatões, sedimentados em nossa sociedade até os dias atuais. A partir disso, seria possível, inclusive, destacar uma simbologia referente às máscaras, utilizadas pelos atores na constituição de tais personagens durante as encenações, que poderiam ser interpretadas através de seu aspecto inflexível, servindo de metáfora para a velhice que, mesmo com o passar dos séculos, continua solidificada e limitada em papéis fixos impostos ao velho pela sociedade.
Referências
CONCONE, Maria Helena Villas Bôas. MEDO DE ENVELHECER OU DE PARECER?. Revista Kairós: Gerontologia, [S.1.], v. 10, n. 2, jan. 2010.
BEAUVOIR, S. (1990). A velhice (Martins, M. H. S., Trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
TEZZA, Ana Rosa. A improvisação, o ator e a commedia dell’arte. Rebento: Revista de Artes do Espetáculo, n. 3, mar. 2012
CONTIN, Claudia. Gli Abitanti di Arlecchinia. Favole Didattiche sull’Arte dell’Attore. Pasian di Prato: Campanotto Editore, 1999.
(*) Maitê Paixão Garcez Soares da Silva – Aluna do 5º período da graduação do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Email: maite.paixao@hotmail.com
Foto destaque: cottonbro/Pexels.
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