Desde o início de julho deste ano tenho esperado pela sensação de urgência necessária ao propósito de relatar o que ocorreu nessa época ao setor de Reabilitação Gerontológica do Lar Escola São Francisco (SP) e ao projeto “Resgatando a autonomia da pessoa idosa” que nele era executado.
Renata Cereda *
Sempre que minha alma geminiana sedenta por comunicação sentava-se à frente de alguma das nossas novas máquinas de escrever, meus dedos nervosos se entrevavam diante da lembrança da fala de um líder imediato no ato de seu despacho em maio, dentre outras coisas sugerindo a mim cuidado com o que escrever nas redes sociais, pois o “Universo da Reabilitação é muito pequeno”. À parte o tom ameaçador da figura de autoridade que me remetia sem escalas à imagem da censura prévia (hoje apelidada carinhosa e eufemisticamente de “controle social da mídia”), ainda nos restava lidar com os desafios de encaminhar dignamente os idosos do setor para outros equipamentos da rede de saúde e começar a batalha quixotesca por manter pelo menos parte do projeto em funcionamento em outro lugar. Sobre a verba remanescente de menos de meio ano de apoio financeiro do Talentos da Maturidade, que viabilizaria esse nosso segundo desafio, nada sei a respeito, passados quatro meses de sua última utilização.
O fato é que o setor de Reabilitação Gerontológica do Lar Escola São Francisco não mais existe e arrastou consigo para a cova rasa o projeto premiado. Foi literalmente extinto e a equipe, dispensada em sua totalidade. Morto ainda adolescente, aos seus aproximados 16 anos. Não sobreviveu à incorporação por um gigante da Reabilitação. Aquela instituição de quase 70 anos que não temia, ao contrário, fomentava a inovação, sucumbiu já idosa e abriu espaço para uma nova lógica, menos congruente com as transformações demográficas e epidemiológicas que vivemos na atualidade.
E o que fazer com todo esse abalo às nossas emoções e ao senso lógico e acadêmico sempre presente em nosso grupo de profissionais? A palavra fechar, a mesma usada para extinguir de fato, deve ser internalizada em nossos corações e nossa alma que sofrem por saber que hoje há um equipamento inovador a menos para a população idosa. Somente no ato subjetivo de fechar é que poderemos nos sentir abertos ao novo, aos novos rumos e caminhos. Se no passado nada distante os caminhos escolhidos nos levaram ao êxito, com a ampliação de nossas capacidades e habilidades em lidar com a saúde integral da pessoa idosa no SUS, o futuro não poderá ser diferente. Ao contrário, se estivermos alinhados a gestões de saúde de fato inovadoras, o objetivo subjacente à nossa tão sonhada premiação no concurso será finalmente alcançado: a multiplicação da ideia e do fazer gerontológicos.
Que o professor me permita divulgar na íntegra aqui seu texto publicado e me desculpe por fazer com ele um exercício criativo proposto por uma psique pululante: ao ler o artigo, sintam o efeito que ocorre ao substituir mentalmente os termos “jornalista” por “profissional de saúde”; “fechamento do jornal”, quando dito da forma positiva, como “fechamento terapêutico”; e “JT” por “Setor de Reabilitação Gerontológica”. Minha análise lacaniana terá muito conteúdo para hoje…
Os dois fechamentos do ‘Jornal da Tarde’, por Eugênio Bucci*
Para quem ainda não admite que o sentido das palavras muda conforme a classe social do cidadão que a pronuncia, aí vai mais uma: o verbo fechar, ou, se você preferir, o substantivo fechamento.
Se um jornalista diz que vai fechar o jornal, nada de novo sob o Sol. Após o fechamento (feito pelo jornalista), o diário vai para as rotativas e, depois de impresso, dobrado, refilado e encadernado, cairá, exemplar por exemplar, naqueles saquinhos plásticos alongados, dentro dos quais voarão por cima dos muros das casas dos assinantes, com notícias supostamente frescas. Quando o jornalista fecha, estamos em vida normal. E boa. Antigamente o fechamento era até comemorado, noite após noite. No tempo em que se fumava em cima da máquina de escrever, o pessoal fechava a edição e depois esticava a conversa em torno de um chope.
Hoje, como antes, fechamentos fazem subir o estresse e têm aquele tom ameaçador da “vitória do caos sobre a vontade augusta de ordenar a criatura”, mas, invariavelmente, terminam mais ou menos bem. Não se tem registro de um fechamento que não tenha, por assim dizer, fechado. O que faz a diferença, o que distingue um bom editor, é saber fechar bem. Saber fechar está para o profissional de imprensa assim como saber “finalizar” – no jargão do futebolismo pós-moderno – está para o artilheiro. Embora a qualidade editorial resida não no fim, mas no início do processo, com pautas bem concebidas e bem planejadas, os jornalistas vangloriam-se de ser grandes fechadores, mesmo quando não o são. O verbo fechar, enfim, é constitutivo da profissão, como um verbo positivo.
Agora, se a gente se afasta da redação e se aproxima dos escritórios da chamada gestão empresarial, a pior coisa que pode existir é um patrão que gosta de fechar. Quando o dono anuncia que vai fechar um jornal, até as rotativas empalidecem. O sentido do verbo se inverte, mortalmente. Jornalista, quando fecha, faz o jornal viver, mas o empresário, ao fechar, mata.
Infelizmente, é desse fechamento (fechamento no sentido empresarial) que se tem falado cada vez mais. Nos países que eram chamados de “ricos” até há dois ou três anos, alastra-se uma crise drástica: veículos impressos caem como frutos cujo tempo já foi, num morticínio sem recurso. Nos Estados Unidos, a partir da quebradeira de 2008, a devastação afetou principalmente os diários locais (que viviam dos classificados do mercado imobiliário, nada menos que o cerne do desastre financeiro daquele ano), numa derrocada que foi imediata e minuciosamente descrita no relatório The Reconstruction of American Journalism (um nome otimista para um cenário tétrico), escrito pelos professores Michael Schudson e Leonard Downie Jr. e editado pela Escola de Jornalismo de Columbia em 2009 (disponível na internet). Desde então o quadro só piorou. Recentemente a revista Newsweek avisou que depois de dezembro de 2012 suas edições impressas serão extintas. Quanto à Time, não anda passando muito bem, mais fina que um folheto de missa dominical.
No Brasil, onde os números parecem saudáveis e a circulação dos diários cresce, os sinais do estrangulamento vão pipocando. Ontem pudemos sentir mais um desses, com o fechamento do Jornal da Tarde. A última edição do JT circulou exatamente ontem, dia 31 de outubro de 2012. “No mundo todo, a competição das novas mídias digitais têm afetado os seus jornais”, explicou o texto Missão cumprida, publicado na página 6A da edição de ontem. “Nesse contexto, o JT teve sua circulação reduzida, assim como seu número de anúncios. O Grupo Estado tentou diversas medidas para revitalizar o JT, mas decidiu focar sua estratégia para o futuro no seu principal título, O Estado de S. Paulo.”
Aqui, a palavra fechamento vira sinônimo de falecimento. O JT está morto. Morreu aos 46 anos de idade. Os jornalistas de São Paulo estão de luto, como de luto estão os leitores, ainda que poucos. Um jornal que se fecha é uma voz que se cala, ou, mais ainda, como uma língua que desaparece, seja porque os falantes minguaram, seja por força das guerras, que dizimam a memória e a identidade dos povos conquistados. Bons jornais são uma cultura à parte, têm um léxico próprio, um “idioma” inconfundível.
Bem sabemos que jornais e revistas abrem e fecham (no sentido empresarial) o tempo todo; nascimentos e mortes são normais, corriqueiros, tanto para os seres humanos como para os órgãos de imprensa, embora nestes a mortalidade infantil seja bem mais alta (dos novos veículos são lançados nas bancas todos os meses, a maioria não sobrevive aos dois ou três primeiros anos). Mas o falecimento do JT não cabe na categoria das trivialidades. Trata-se de um passamento de outra ordem. Nas suas páginas se deu uma renovação jornalística que irrigou todo o ambiente da imprensa, em texto, no design e no uso da fotografia (no JT, uma única foto, imensa, sem que fossem necessárias palavras, era capaz de sintetizar sozinha a notícia e seu sentido). A sua redação ficará como um ponto de luz na história da imprensa paulistana, apesar das sombras que o levaram a desaparecer melancolicamente. Estamos realmente de luto.
No fim da tarde de terça-feira, por volta das 18 horas, um longo aplauso (longo mesmo, longo de três minutos) ecoou no sexto andar do prédio do Estadão, na Marginal do Tietê. Eram os jornalistas de todas as redações do grupo aplaudindo o último fechamento (no sentido jornalístico) do jornal que seria fechado (no sentido empresarial) no dia seguinte. Eram palmas de um funeral. Nos próximos dias os cronistas se ocuparão de lembrar os talentos que por ali criaram peças memoráveis e os episódios folclóricos do JT. Agora, fiquemos apenas com isto aqui, que não é nem um obituário; talvez seja apenas um lamento metalinguístico, um réquiem sem nomes próprios. O nosso mundo está menor e eu penso nisso enquanto fecho mais este artigo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP e da ESPM