Nunca deixou de esquecer dos dedos tortos da AvóThereza tentando apontar para o Mercado Municipal e a igreja São Bento, como se estivessem quebrados nas pontas.
Bruno José Monte Rey da Cunha (*)
Um certo Manuelzin morava com sua mãe, seu pai, sua Avó e seus dois irmãos no centro da maior capital da América Latina, na cidade mais movimentada do extremo sul do hemisfério, onde a concretude do concreto duro acinzentava o verde resistente. Quando completara sete anos a AvóThereza levou-o de ônibus, sentado nas primeiras cadeiras da frente, até a 25 de Março. Da viagem, que durou diversos infinitos e brecadas, ele guardara pequenitas lembranças embaçadas na memória. Nunca deixou de esquecer dos dedos tortos da AvóThereza tentando apontar para o Mercado Municipal e a igreja São Bento, era como se estivessem quebrados nas pontas, onde o norte era leste e o leste era oeste.
Mas sua AvóThereza era alta, cabelos brancos brilhantes e corpulenta. Ao lado dela não tinha medo de nada, segurar sua mão era sentir o calor e as montanhas dos dedos tortos da AvóThereza. Queixava-se da muvuquenta lotação dançante das ruas. Ela dizia,
– Oh lá, nunca vi lugar tão cheio
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Mesmo assim, ao lado da Avó, enquanto estava fora de casa, Manuelzin entusiasmou da tanta alegria dos todos que lhe cruzavam. Descobriu que seus olhos olhavam tudo na extrema detalhosidade. Daí, pedia à AvóThereza lhe contasse quem eram todas aquelas pessoas e para onde iam naquela pressa. AvóThereza dava de falar dos corridinhos e tentava tomar um rumo mais devagar pra não tropeçar nesse mundel de gente.
– É melhor desviar da pressa.
Mas Manuelzin dava aperto de querer ir até a pressa e ver onde iam. Manuelzin adorava AvóThereza, mãe-velha de mamãe.
Quando chegou em casa, sua maior vontade era contar a aventura dos dedos tortos e das pernas rápidas do povo apressudo ao Biro. Porém, mamãe esperava de envelope na mão e pediu para Manuelzin ir para o quarto brincar. Ficou acanhado, será que fez algo de errado. O irmão mais velho perguntava:
– Que é, Manuelzin?
– Biro, você acha que vó tá brava comigo por ter rido dos dedos tortos e querer apressear o pé??
Biro ria até que daí ouviu-se um chororó atrás da porta, ninguém podia abrir, mas dava vontade de chorar sem saber chorar.
Mas o jantar era outro aquele dia, só se ouvia a Tv barulhenta chascurtar até que AvóThereza finalmente solta a fala presa:
– Avó vai precisar ficar um tempo fora, fazer uma viagem…
– Para onde AvóThereza, quero ir também.
Manuelzin estava pronto a caminhar nos dedos tortos a qualquer lugar que apontassem. Daí, antes do sonhar, mamãe contou que AvóThereza estava doentinha e que ia se cuidar, logo menos a se recuperar.
Dos tempos antes da partida, a casa ficou escura e os não-ditos eram grandes, até Biro perdia a fala, ficou tão amigo do silêncio que era difícil dizer palavruras. Ninguém queria brincar. Daí era o último dia da AvóThereza e Manuelzin olhou para a malinha cheia e perguntou se AvóThereza voltava logo para irem encontrar as gentes apressadas. AvóThereza ouvia de sofridão, não sabia se chorava ou se o abraçava, fez os dois, juntou Manuelzin no coração a coração. Deu para sentir algo se acumular no peito, como uma nuvem tempestuosa que ganhava tamanho na voz de cada palavra:
– A vida, meu filho, a vida é feita dessas coisas que a gente não sabe explicar, mas que acontece. Um dia estamos aqui a brincar, num outro a esperar a chuva passar.
AvóThereza enxuga as lágrimas, já não sabe mais se eram suas ou de Manuelzin:
– O futuro tá cheio dessas coisas difíceis, antes as pessoas eram de chegar, ninguém ensinou a despedir. Quando eu for e você se lembrar de mim, lembra que sou eu a te fazer cócegas com meus dedos tortos nas tortas memórias de nós.
Manuelzin a empurra e ditou a correr desgovernado pela casa, carregava o choro por tudo quanto é lado, empurrou as cadeiras, tropeçou e caiu no chão da sala. Todos abriram as portas e vieram a correr assustados com o inevitável.
Manuelzin não sabia se tinha mesmo caído ou se apenas se jogou lá.
AvóThereza o viu e levantou-o, segurando Manuelzin entre seus dedos tortos, pela última vez.
(*) Bruno José Monte Rey da Cunha – Psicólogo ela PUC-SP. Especialização em Gerontologia pelo IPGG/SP. Colaborador do Portal do Envelhecimento. E-mail: brunomonterey@gmail.com
Foto destaque de Askar Abayev/Pexels