Compreendo o escopo da biopolítica e necropolítica contemporâneas a partir da forma como se deixa morrer os idosos no Brasil e o fazer morrer operado pelo Estado no momento atual.
Dhara Côrte de Lucena (*)
Didier Fassin, em seu texto “Além do bem e do mal? Questionando o desconforto antropológico com a moral”, propôs o desenvolvimento de uma antropologia da moral, referida pelo autor como a crença humana na necessidade de se lutar contra o mal e distinguir o certo do errado. Neste ensaio, demonstro como a situação de grande parte das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) e, mais recentemente, as reações discriminatórias frente à população idosa nos tempos de pandemia, expressam a economia moral brasileira.
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Com essa análise, compreendo o escopo da biopolítica e necropolítica contemporâneas a partir da forma como se deixa morrer os idosos no Brasil e o fazer morrer operado pelo Estado no momento atual.
O paradigma estudado por Didier Fassin foi a política de imigração e asilo na França na década de 1990, na qual observou o aparecimento de um novo critério inscrito na lei de regularização de estrangeiros em período de restrição e repressão crescente: a “razão humanitária”, cuja aplicação abrangia pessoas seriamente doentes sem possibilidade de tratamento em seus próprios países.
O autor percebe uma relação entre as mudanças na lei e o desenvolvimento das noções de ‘exclusão’ e ‘sofrimento’ para se referir às desigualdades econômicas, ou seja, a demonstração de compaixão ao invés de justiça e a passagem de ‘questões sociais’ para ‘questões morais’. Ao final, ele define o programa político de imigração como uma ‘repressão compassiva’. São, portanto, a ‘compaixão’ e a ‘repressão’ que Didier Fassin encontra na economia moral das políticas analisadas.
Em relação à população idosa, doença também é o que causa a compaixão, e o princípio humanitário está presente no caráter assistencialista de grande parte das ILPIs. Acredito, como Fassin, que humanitarismo e política se confundem, compaixão e menosprezo também. Imigrantes podem apenas clamar pela sua sobrevivência – sua ‘vida nua’ – devido à falta de direitos humanos e cidadania. Os idosos, por sua vez, apenas sobrevivem, não porque sofrem repressão, mas porque compaixão e menosprezo andam juntos. O cuidado centrado na doença, no corpo em sofrimento, é um cuidado a partir da infantilização e falta de autonomia do idoso. Cuida-se negando sua ‘vida plena’.
No momento atípico que vivemos, a doença é vista com suspeita, a doença, o covid-19, é perigoso para a vida da população. A compaixão dá lugar a um menosprezo agravado, o corpo não é mais o corpo em sofrimento, mas o corpo deslegitimado por razões econômicas, o corpo inútil. A discriminação é escancarada, e a biopolítica se junta à necropolítica em uma política de morte, pois é adotada uma espécie de ‘estado de sítio’ em que os direitos das pessoas idosas podem ser completamente ignorados, o corpo que sofre não é reconhecido. Ocorre aí uma passagem na atuação do Estado de deixar morrer para o fazer morrer.
Para explicitar o que se quer dizer por deixar e fazer morrer, Foucault utiliza a teoria clássica da soberania, que situa o direito de vida e de morte como um dos atributos fundamentais da soberania. A posse desse direito é traduzida pelo autor como o poder de ‘fazer morrer’ e ‘deixar viver’, isso porque o direito de vida e morte se exerce sempre do lado da morte, é por meio do direito de matar – fazer morrer – que o soberano exerce seu direito sobre a vida – deixar viver. Uma transformação do direito político do século XIX inverte, modifica e completa o direito soberano, esta transformação é a biopolítica inserida no Estado moderno que passa a ter o poder de ‘fazer viver’ e ‘deixar morrer’.
É interessante como essa expressão, deixar morrer, faz muito sentido quando se pensa em ILPIs. Visitei algumas, públicas e privadas, em São Paulo, quando fui realizar oficinas de arteterapia do projeto Faça Memórias. A cena era sempre a mesma, TV ligada em algum canal que passe notícias, idosos sentados em cadeiras ou poltronas, alguns olham para a TV, outros encaram a parede, não se falam entre eles.
As cuidadoras aparecem para dar comida, remédio ou levar ao banheiro. Os idosos parecem ter sido de fato deixados ali para morrer, e as instituições tratam a doença e não a pessoa priorizando a vida nua, e os idosos só podem esperar a morte. Fassin diz que, para muitos, o centro humanitário de Sangatte (centro humanitário francês estudado por ele) parecia mais um campo de confinamento. O mesmo pode-se dizer para algumas ILPIs, mais conhecidas como asilos.
Leia o artigo completo na Revista Longeviver
(*) Dhara Côrte de Lucena – Estudante de Ciências Sociais (USP) e de Arte: História, Crítica e Curadoria (PUC-SP). Colaboradora do Portal do Envelhecimento. Compõe a equipe do projeto Faça Memórias. E-mail: [email protected]
Foto destaque de Brett Sayles no Pexels