A curatela é destinada à proteção de pessoas que, em razão de portarem ou sofrerem alguma limitação em particular, encontram-se temporária ou permanentemente incapacitadas de gerir sozinhas a própria vida.
Por Iadya Gama Maio (*)
Toda pessoa humana pode ser titular de direitos e contrair obrigações. Essa aptidão, denominada “personalidade jurídica”, inicia-se a partir do nascimento com vida, ressalvados, desde a concepção, os direitos do nascituro. Embora todos possam ser sujeitos de direito, a prática irrestrita dos atos da vida civil só é autorizada a quem o ordenamento considera plenamente capaz. Há uma distinção, portanto, entre os conceitos de personalidade jurídica e capacidade jurídica.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência(1) (Lei nº 13.146/15) trouxe um novo paradigma para a teoria das incapacidades encartado no Código Civil brasileiro. Após as modificações ocorridas na legislação brasileira, hoje impera a ideia de que a regra é a capacidade plena para todos, e a exceção é a incapacidade relativa(2) (e muito mais exceção, a do tipo absoluta, como até pouco tempo), sendo que são considerados relativamente incapazes a certos atos ou à maneira de os exercer os (i) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; (ii) os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (iii) aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; e (iiii) os pródigos.
Como bem ressaltou Lenildo Queiroz Bezerra, Promotor de Justiça e Coordenador em exercício do Caop Inclusão do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte:
Frente a esse panorama, não existe mais, no sistema privado brasileiro, pessoa absolutamente incapaz que tenha idade superior aos dezesseis anos. Dessa formulação, duas ilações podem ser expendidas: 1) não há mais que se falar em ação de interdição absoluta no atual sistema civil, já que crianças e adolescentes não são interditados; 2) pessoas com deficiência mental, mesmo aquelas que não têm nenhuma capacidade de discernimento para a prática de atos da vida civil, ainda assim preservam a capacidade de exercício de direitos fundamentais, salvo aqueles limitados por decisão judicial.”(3
Portanto, adotou-se como única hipótese de incapacidade absoluta os menores de 16 (dezesseis) anos(4). Sendo assim, a curatela(5) poderá, dentre outros motivos, incidir para os maiores relativamente incapazes, que, por causa transitória ou definitiva, não puderem exprimir vontade.
O pressuposto de presunção da capacidade civil das pessoas deverá servir como norte interpretativo. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos. Portanto, a nova lei nada mais fez do que abandonar a presunção inicial de incapacidade civil absoluta das pessoas com deficiência mental, intelectual ou psicossocial(6), sendo que é uma mudança de paradigma que tem por finalidade precípua a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade, propiciando a ela a prática dos atos da vida, como casamento, sexo, filhos e de trabalho. Portanto, a curatela somente se dará de forma excepcional e fundamentada e deverá ser proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso, devendo durar o menor tempo possível.
Nesses casos, o processo judicial de interdição(7) poderá ser utilizado como medida de proteção ao idoso que não esteja apto a emitir uma vontade juridicamente válida, sendo que um dos instrumentos jurídicos é o instituto da curatela, como uma forma de representação de pessoas que não conseguem expressar sua vontade nem praticar atos da vida civil. Trata-se de viabilizar ou de permitir ao idoso incapaz que tenha alguém que o represente sempre que não puder atuar sozinho.
O instituto da curatela(8) é destinado à proteção de pessoas que, em tese, são capazes de praticar por si sós os atos da vida civil, sem a interferência de terceiros, mas, em razão de portarem ou sofrerem alguma limitação em particular, encontram-se temporária ou permanentemente incapacitadas de gerir sozinhas a própria vida. Dessa forma, as pessoas passíveis à curatela são as que se tornaram dependentes do amparo de outras pessoas, necessitando destas para praticar atos da vida civil considerados válidos e eficazes no mundo jurídico. A curatela seria, portanto, um “encargo público, conferido, por lei, a alguém, para dirigir a pessoa e administrar os bens de maiores, que por si não possam fazê-lo”(9).
Desta forma, podemos considerar que a interdição(10) nada mais é do que a privação legal que determinada pessoa sofre no que diz respeito ao gozo e exercício de seus direitos, estando impossibilitada de gerir, por si só, sua vida e seus negócios e responder pelos atos que pratica em razão de suas limitações, ficando dependente dos cuidados de pessoa legalmente habilitada e encarregada deste mister por meio de nomeação em processo judicial.
Portanto, é de suma importância fazermos uma breve e sintética exposição acerca da curatela, suas causas e finalidade, para que se possa viabilizar a compreensão sobre o instituto e sobre as vantagens e desvantagens para o interditando e para o curador.
Caso fique demonstrado que o idoso, que apresente algum déficit cognitivo e não tenha mais discernimento para a prática de atos da vida civil, será possível postular-se a declaração judicial da incapacidade relativa.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, em seus artigos 84 e 85, aduz que o processo de curatela é medida de proteção extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso e durará o menor tempo possível. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, portanto, encontram-se excluídos o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, já que esses últimos são direitos de natureza existencial.
A interdição poderá ser promovida(11) pelo cônjuge ou companheiro; pelos parentes ou tutores; pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando e até mesmo pelo Ministério Público(12). O requerente deverá, com a petição inicial(13), juntar laudo médico para fazer prova de suas alegações ou informar a impossibilidade de fazê-lo. Justificada a urgência, o juiz pode, inclusive, nomear curador provisório ao interditando para a prática de determinados atos.
Durante o processo de interdição, o juiz entrevistará o interditando, oportunidade em que pode ser acompanhado por um especialista, além de fazer uso de recursos tecnológicos capazes de auxiliar o interditando a manifestar sua vontade e responder as perguntas formuladas. Além disso, o juiz pode se deslocar até o local onde esteja o interditando, em casos de impossibilidade de este se apresentar em juízo para a entrevista, e nela também podem ser ouvidos os parentes e pessoas próximas.
Se houver necessidade, será realizada perícia com equipe multidisciplinar, que seria a reunião de um grupo composto por especialistas em diversas e distintas áreas de formação acadêmica, permitindo uma troca e uma abrangência maior de conhecimentos destes profissionais em prol do mesmo objetivo, qual seja, a avaliação do interdito e de seu estado. O laudo a ser produzido por esta equipe, deverá, ainda, indicar especificamente, se for o caso, os atos para os quais o interditando necessita da curatela, pois os seus limites serão fixados em sentença.
Na sentença(14) que decretar a interdição, o juiz: I- nomeará curador, que poderá ser o requerente da interdição, e fixará os limites da curatela, segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito; e II – considerará as características pessoais do interdito, observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências. A curatela deve ser atribuída a quem melhor possa atender aos interesses do curatelado, inclusive, podendo-se estabelecer a curatela compartilhada a mais de uma pessoa(15).
A autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens do incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do curatelado ao tempo da interdição, salvo se o juiz considerar outra solução como mais conveniente aos interesses do incapaz. O curador deverá zelar pelo bem-estar e prestar contas(16) de tudo que diz respeito à vida do curatelado, especialmente na questão financeira; buscar tratamento e apoio apropriados à conquista da autonomia pelo interdito; bem como, preservar o direito do interditado à convivência familiar e comunitária, sendo evitado o seu recolhimento em estabelecimento que o afaste desse convívio.
A interdição poderá, a qualquer tempo, ser levantada total ou parcialmente quando demonstrada a capacidade do interdito para praticar todos ou alguns atos da vida civil, respectivamente.
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Notas
(1) O Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído pela Lei 13.146/15, também conhecido como Lei Brasileira de Inclusão ou LBI, que entrou em vigor no dia 2 de janeiro de 2016, modificou dispositivos do Código Civil que tratavam da capacidade civil. Seus artigos 114 e 123, inciso II revogaram os incisos do artigo 3º do CC e alteraram seu caput, como também modificaram os incisos II e III do artigo 4º do CC.
(2) Por força das alterações que foram feitas no artigo 3º do Código Civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência ( Lei nº 13.146, de 2015), não existem mais absolutamente incapazes maiores.
(3) Parecer proferido nos autos da consulta nº 20165020176, em 06.05.2016.
(4)Art. 3º do Código Civil
(5)O instituto da curatela está disciplinado no Código Civil a partir do artigo 1.767.
(6) O termo “pessoa com deficiência psicossocial” (PcDP) é relativamente novo, quase contemporâneo do nome anterior, “pessoa com deficiência psiquiátrica”. A deficiência psicossocial – também chamada “deficiência psiquiátrica” ou “deficiência por saúde mental” foi incluída no rol de deficiências pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), adotada na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 13/12/06. Convém salientar que o termo “pessoa com deficiência psicossocial” não é o mesmo que “pessoa com transtorno mental”. Trata-se, isto sim, de “pessoa com sequela de transtorno mental”, uma pessoa cujo quadro psiquiátrico já se estabilizou.
(7)Como se pode notar, o artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência deixou de prever expressamente a interdição, submetendo a pessoa com deficiência ao regime da curatela, restrita apenas aos atos de caráter negocial e patrimonial. Com o advento do estatuto, houve, inicialmente, alteração na redação dos artigos 1.768, 1.769, 1.771 e 1.772 do Código Civil, que tiveram o vocábulo “interdição” substituído por “curatela”. Posteriormente, houve revogação dos artigos 1.768 a 1.773 do CC com a entrada em vigor do novo CPC, que passou a tratar da matéria nos artigos 747 a 763. Embora o novo CPC ainda faça alusão à “interdição”, alguns autores se filiam ao entendimento que essa expressão deveria ser abandonada, haja vista a existência de um estatuto todo voltado especificamente para a pessoa com deficiência e que teve o especial cuidado de abolir aquela expressão. Restou também revogada a curatela da pessoa enferma ou com deficiência física, prevista no extinto artigo 1.780 do CC, remanescendo, no entanto, a curatela do nascituro (artigo 1.779).
(8) Procurou-se, portanto, evitar os termos “incapacidade” e interdição”, que geravam estigma desnecessário às pessoas com deficiência mental ou intelectual, pois toda pessoa é capaz e suscetível de direitos, podendo ser suprida sua incapacidade intelectual de fato por meio da curatela. A interdição, como medida de proibição do exercício de direitos, não se mostra consentânea com a atual tendência de modernização das normas, que vem buscando a inclusão de todas essas pessoas e a busca da autonomia da vontade por elas. Preferiu-se o termo “curatela”, destinado à proteção da pessoa e à prática de determinados atos, que devem se restringir aos patrimoniais e negociais. No entanto, a depender do caso concreto, o juiz poderá alargar a interdição de modo fundamentado em sua sentença apontando os motivos. Logo, a incapacidade absoluta poderá ser decretada, se houver necessidade.
(9)BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. 8. Ed. Rio de Janeiro. 1950. V. II. In RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito de família. 28. ed. Rev. E atual. Por Francisco José Cahali; de acordo com o novo Código Civil (Lei n.10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva. 2004. V. 6. P. 411.
(10)As figuras da interdição são conhecidas como interditando e curador.
(11)O novo Código de Processo Civil elenca no artigo 747 as pessoas que podem propor a ação de interdição. Nesse dispositivo encontramos a primeira mudança no procedimento, uma vez que além de ter alterado a ordem preferencial para a propositura da ação, também viabilizará que a ação seja proposta pelo companheiro e pelo representante de entidade onde o interdito se encontre abrigado nos casos em que o convívio domiciliar é inviável.
(12)CPC- art. 748. O Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença mental grave: I – se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do art. 747 não existirem ou não promoverem a interdição; II – se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I e II do art. 747.
(13)CPC- art. 749. Incumbe ao autor, na petição inicial, especificar os fatos que demonstram a incapacidade do interditando para administrar seus bens e, se for o caso, para praticar atos da vida civil, bem como o momento em que a incapacidade se revelou.
(14)CPC- art.756, § 3o A sentença de interdição será inscrita no registro de pessoas naturais e imediatamente publicada na rede mundial de computadores, no sítio do tribunal a que estiver vinculado o juízo e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça, onde permanecerá por 6 (seis) meses, na imprensa local, 1 (uma) vez, e no órgão oficial, por 3 (três) vezes, com intervalo de 10 (dez) dias, constando do edital os nomes do interdito e do curador, a causa da interdição, os limites da curatela e, não sendo total a interdição, os atos que o interdito poderá praticar autonomamente.
(15)Código Civil, art. 1.775-A. Na nomeação de curador para a pessoa com deficiência, o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa.
(16)A lei material tratou de dispensar a prestação de contas abordada pelo artigo 1.755 do Código Civil quando o curador for o cônjuge casado com o interditado sob o regime da comunhão universal de bens.
(*)Iadya Gama Maio – Procuradora de Justiça- MPRN. Doutora em Ciências-USP. Mestre em Gerontologia Social-UAM. Mestre em Direito Constitucional-UFCE. Associada e membro do Conselho Técnico-Científico da AMPID. Email: iadya@yahoo.com.br